Artigos
Na fila: o próximo poderá ser você
Por: Ingrid Birnfeld
Caixa expresso do supermercado. Tudo fluía rapidamente. A senhora agradeceu, pegou suas sacolas. A moça à minha frente tentava comprar poucos itens. Então tudo parou. Pensei que algo técnico havia ocorrido ou que faltara o preço de um dos seus produtos, mas não. A atendente examinava as cédulas que havia recebido como pagamento. Colocou-as contra a luz, esfregou os dedos nos fios de segurança, riscou com caneta especial para confirmar a falsidade, chamou o coordenador. Enquanto ele conferia se ela havia realizado todos os passos, numa fração de segundo a moça me buscou pelo canto do olho, desejando saber se eu percebia o que estava realmente ocorrendo. Não havia nada de errado com as cédulas, o "problema" é que elas tinham sido entregues por uma mulher trans. Daí a demora: naquele lugar, num domingo, aquela moça era suspeita. Como se não bastasse a ousadia de ser dona da sua própria vida, de desafiar padrões sociais normopatas, de conseguir sobreviver numa sociedade que marginaliza quem escolhe ser quem se é, que exclui as pessoas LGBTQIA+ de políticas protetivas e que para elas costuma reservar os guetos, a indiferença, os trabalhos mais precários e o extermínio, circulava à luz do dia como quem não deve nada.
O relato desse fato cotidiano não objetiva a condenação da conduta da atendente. Mulher, trabalhadora, talvez mãe solo, provavelmente com pouca instrução, é compreensível que tenha poucas condições para ter consciência de si e consciência de classe e resistir aos mandos do empregador. Não objetiva, também, condenar moralmente o coordenador, que pode ter reproduzido padrões e ordens que ele mesmo jamais se questionou. Pretende, apenas, responder àquele olhar: sim, eu percebi o que fizeram com você, que tem a alma e o corpo castigados todos os dias. Mas percebi, também, o que fizeram e fazemos conosco: cúmplices, estamos atravessados por preconceitos e violências estruturais as mais diversas, que, ao invés de nos unir, nos atomizam e nos separam da nossa humanidade e igualdade. Que o dia de hoje, que celebra a luta contra a LGBTQIA+fobia, sirva para atentarmos para o que parece banal, enxergarmos quem busca a nossa alteridade, empatia e reconhecimento, e sobretudo para que tenhamos certeza de que defender direitos para todos não é uma opção, é nosso dever como espécie humana. Ou o próximo a parar a fila poderá ser você leitor, e sua ousadia.
Ingrid Birnfeld é advogada e bacharel em filosofia
Artigo publicado no site Sul21 de 16 de maio de 2023:
https://sul21.com.br/opiniao/2023/05/na-fila-o-proximo-podera-ser-voce-por-ingrid-birnfeld/
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil