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Artigos

População trans e acesso aos benefícios previdenciários

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Por: Camila dos Santos Oliveira

A proteção previdenciária à população trans avança em passos tímidos, dadas as dificuldades enfrentadas pela baixa adesão ao sistema previdenciário e reconhecimento do gênero de forma identitária. Porém cabe idêntica cobertura previdenciária e acesso aos benefícios devidos à população brasileira em geral e, portanto, é de extrema importância alavancar debates em campo legislativo, judiciário e cultural, visando garantir a efetividade dos direitos sociais de forma não excludente, livre de preconceitos e discriminações.

A pessoa trans nasce com o gênero autopercebido oposto ao biologicamente atribuído no nascimento, vivenciando o gênero de forma identitária, por intermédio do exercício de seu direito à autodeterminação e à personalidade. Por um longo período a “incongruência de gênero” era considerada uma doença, razão pela qual encontra-se no rol de transtornos mentais da Classificação Internacional de Doenças – CID 10 F 64.0).

Os movimentos LGBTQIA+ combateram fortemente a patologização e, em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) removeu a “incongruência de gênero” do rol de transtornos mentais, sabiamente a incluindo no rol de condições relativas à saúde sexual. É inadmissível, portanto, atribuir a “transgeneralidade” como requisito para concessão de aposentadoria por invalidez, por idade ou por tempo de contribuição de pessoa com deficiência e/ou benefícios de prestação continuada.

Nesse aspecto, o judiciário tem alinhado as decisões considerando as variáveis socioeconômicas, psicológicas, individuais e culturais, relativas à empregabilidade, problemática de exclusão escolar, violência física e psicológica fundada na discriminação e preconceito, de modo a minimizar os impactos delas na expectativa de vida do indivíduo trans, que é de 35 anos de idade, enquanto os indivíduos cisgêneros possuem uma expectativa de vida de 76,8 anos de idade.

Não é porque as pessoas trans contrariam padrões socialmente impostos de divisão binária de gêneros que se pode entender razoável a identificação de inaptidão laboral e/ou incapacidade laboral e/ou redução funcional para o exercício da cidadania e os atos da vida civil.

Com o julgamento do tema 761, de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal – STF (ADI 4275), tornou-se perfeitamente possível a alteração de gênero no assento de registro civil transexual, sem condicionar à cirurgia de redesignação de sexo; segundo os Ministros do STF, cabe ao Estado somente reconhecer as identidades de gênero, jamais constituí-las. Contextualiza-se que tampouco é plausível o apontamento nos documentos civis que registrem a condição trans, conforme posicionamento do STF – tema 761:

“ii) essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”; iii) nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;”

O debate se acentua em torno do reconhecimento do sexo autopercebido para fins previdenciários, em especial no que tange às modalidades de aposentadorias (por idade, tempo de contribuição, híbrida, especial), que apresentam requisitos de tempo e idade conforme o gênero.

No momento de sua aposentação ou de sua habilitação para qualquer benefício da previdência social, a norma aplicável é sempre a mesma relacionada à pessoa cisgênero, sem ressalvas ou exigências relacionadas à cirurgia de transição. Inclusive, vale destacar que o judiciário brasileiro não tem aplicado teses de regras de conversão ou pedágio contributivo, muito pelo contrário, veda a aplicação de conversores, pois gravaria na pessoa trans a sua condição, diferenciando dos seus pares cisgênero, nitidamente com caráter discriminatório e desigual. Em outras palavras: não é determinante fazer ou não a cirurgia de redesignação de sexo ou fixar a data de alteração tardia dos documentos civis como marco temporal para a pessoa se tornar transgênera, pois faz parte de um processo evolutivo.

Caso a pessoa trans apresente documentação que comprove que tenha implementado todos os requisitos necessários para obtenção do benefício previdenciário de acordo com o gênero com que se identifica, nada obsta a concessão, de igual forma como ocorre com todos os segurados que se socorrem da seguridade social.

A propósito, não se trata de majorar, criar ou transformar benefício já criado pela legislação previdenciária, mas tão somente de conferir o benefício inerente ao seu gênero, seja ele aquele atribuído no nascimento (biológico) ou autopercebido pelo indivíduo – em harmonia com os princípios de universalidade, uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços, garantindo que o sistema de seguridade social abranja ao máximo contingências sociais. Por tais razões, o planejamento previdenciário é de extrema importância, porque tem por finalidade planejar e orientar o segurado ao melhor benefício e renda mensal inicial, bem como uniformizar documentação pré e pós alteração de nome e gênero dos documentos civis, para fins de solucionar inconsistências documentais e evitar indeferimentos aos benefícios de aposentadoria junto ao Regime Geral da Previdência Social.

Camila dos Santos Oliveira é advogada e atua na área do Direito Trabalhista


Referências:
PANCOTTI, Heloisa Helena Silva. Previdência Social e Transgêneros. Proteção Previdenciária, Benefícios Assistenciais e Atendimento à Saúde para os Transexuais e Travestis. 2ª Edição – Curitiba: Juruá, 2020.
SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Operação Pente Fino e minirreforma da Previdência. Porto Alegre: Paixão Editores, 2019.
TAVARES, Daniela Silva Lamblém. Diálogos Interdisciplinares com o Direito Previdenciário. Paixão Editores, 2021.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. https://www.ibge.gov.br/busca.html?searchword=expectativa%20de
Associação Nacional de Travestis e Transexuais. https://antrabrasil.org/category/violencia/
Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Transexual pode se aposentar de acordo com o sexo que se identifica. https://www.ibdp.org.br/?s=transexuais.