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Terceirização, a livre iniciativa e a dignidade humana do trabalhador – um comentário sobre o voto do Ministro Barroso, relator da ADPF 324

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Por: Fernanda Palombini Moralles e Carlos Henrique Horn

1. Introdução

O conceito de terceirização é daqueles que enseja diferentes definições conforme as áreas de conhecimento que o estudam regularmente – a mencionar, dentre outras, Direito, Administração, Economia e Sociologia. Suas várias dimensões fazem com que seja ampla e variada a gama do que pode ser incluído na definição. Uma dessas definições parte da experiência brasileira, onde tal fenômeno vem acompanhado da ampliação da exploração do trabalho e da precarização das condições de vida dos trabalhadores, e privilegia a característica de precarização: 

Nossa definição parte do pressuposto de que a terceirização, no Brasil, tem um lugar preciso na estrutura do mercado de trabalho: nos últimos vinte anos de nossa história, ela se tornou o mais importante recurso estratégico das empresas para gestão e redução dos custos com a força de trabalho. Assim, para sermos rigorosos com a amplitude da utilização do termo terceirização e por reconhecer a importância política que ela tem para a organização dos trabalhadores, optamos por uma definição abrangente: terceirização é todo processo de contratação de trabalhadores por empresa interposta, cujo objetivo último é a redução de custos com a força de trabalho e/ou a externalização dos conflitos trabalhistas. Ou seja, é a relação na qual o trabalho é realizado para uma empresa, mas contratado de maneira imediata por outra. Na realidade brasileira, a terceirização é inseparável da ampliação da exploração do trabalho, da precarização das condições de vida das classes trabalhadoras. E, certamente, ela não teria a abrangência que tem hoje se não fosse a sua capacidade de reduzir custos – e, portanto, de servir como poderoso instrumento para a recomposição das taxas de lucro – e de transferir para outras empresas (as contratadas) o "problema trabalhista", a necessidade de administração da força de trabalho e de negociação com ela e seus sindicatos. É esta definição ampla que defenderemos aqui. (MARCELINO; CAVALCANTE, 2012, p. 338).  

O presente estudo tem por objeto de análise o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, cujo escopo trata exatamente da extensão legal possível da terceirização, entendida como aquela decorrente do processo de contratação de trabalhadores por empresa interposta. É uma relação em que o trabalho é realizado para uma empresa nas suas próprias dependências, mas a contratação do trabalhador é formalizada por outra empresa. 

O relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF) foi o Ministro Luís Roberto Barroso, quem, no início de seu voto, assim define terceirização:

Terceirizar significa transferir parte da atividade de uma empresa para outra empresa, por motivos de custo, eficiência, especialização ou por qualquer outro interesse empresarial legítimo. Assim, uma etapa da cadeia produtiva de uma empresa – chamada empresa contratante – passa a ser cumprida por uma outra empresa – denominada empresa contratada ou empresa prestadora de serviços. 

Sua recepção no sistema jurídico nacional relaciona-se à intensificação dos processos de terceirização no Brasil e em diversos outros países, a partir dos anos 1990, como um fenômeno do mundo do trabalho. Utilizada como estratégia empresarial para a redução de custos, a partilha de risco e o aumento da flexibilidade organizacional, a terceirização representa um importante recurso estratégico para a diminuição dos custos das empresas com a força do trabalho. 

Diferentemente de outros países da América Latina, também de tradição legislada, até recentemente, não havia, em nosso país, lei que disciplinasse a terceirização. Com efeito, até o final de março de 2017, não havia regulamentação em lei acerca da terceirização. A disciplina jurídica era realizada por meio de Enunciados e Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Coube, portanto, ao Poder Judiciário estabelecer os parâmetros e limites para a terceirização de serviços, inicialmente, pela edição da Súmula 256, de 1986, que concluía ser o empregador aquele que se aproveitava da força de trabalho. Esse enunciado passou a ser aplicado em grande parte das decisões, quer no reconhecimento de vínculo de emprego entre o trabalhador e a empresa tomadora dos serviços, quer na declaração da responsabilidade solidária das empresas contratantes. 

A partir dos anos 1990, sob o contexto do neoliberalismo, a flexibilização das regras de proteção social ao trabalho e a força dos que defendiam a terceirização da mão de obra provocou alteração na jurisprudência. Assim, no ano de 1993, o Tribunal Superior do Trabalho cancela o Enunciado 256 e edita a Súmula 331 sobre o mesmo tema diante da contínua pressão de setores empresariais. Nessa nova Súmula, o TST consagra o entendimento de que a terceirização é legítima nas atividades não essenciais da empresa, as chamadas “atividades de meio”, e declara ser subsidiária a responsabilidade do tomador dos serviços pelos créditos trabalhistas, o que é estendido aos entes públicos que terceirizam, com nova alteração do texto da Súmula, nos anos 2000. 

Por sua vez, dada a procedência da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16 (proposta pelo Governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda), o Tribunal Superior do Trabalho volta a tratar do tema e altera o texto da Súmula 331, no ano de 2011, entendendo que somente será declarada a responsabilidade subsidiária do ente público, que terceiriza a mão de obra, quando comprovado que este não fiscalizava os pagamentos trabalhistas das empresas contratadas (BIAVASCHI; DROPPA, 2014).

Em 31 de março de 2017, é promulgada a Lei n. 13.429, que alterou e acrescentou diversos dispositivos à Lei n. 6.019/1974 para tratar sobre a terceirização. A Lei n. 13.429 corresponde à primeira legislação a regulamentar o assunto no Brasil, sendo decorrente de um projeto que tramitava há mais de vinte anos no Congresso Nacional. Neste meio tempo, várias foram as tentativas dos setores mais favoráveis à ampla desregulamentação do trabalho em nosso país, para a eliminação do que enxergavam como entraves da Súmula 331 do TST. Com efeito, debatia-se no Supremo Tribunal Federal se o Tribunal Superior do Trabalho, ao proibir a terceirização nas atividades-fim da empresa, estaria ou não violando a liberdade de contratar de que trata a Constituição Federal de 1988.

A Lei n. 13.429/2017 não restringiu os serviços passíveis de terceirização apenas às atividades-meio da empresa, o que levou à interpretação de que havia sido autorizada a terceirização na atividade-fim das empresas, sendo tal intenção compreendida pelos debates dos parlamentares na análise e votação do projeto. Apesar da ampla possibilidade de terceirização, a legislação era omissa quanto à previsão de terceirização da atividade-fim e gerava insegurança jurídica, pois a imprecisão da norma em admitir (ou não) a terceirização na atividade-fim poderia levar a uma discussão sobre sua permissão ou não no ordenamento jurídico. 

A Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017) acabou por sanar a omissão ao estabelecer que a prestação de serviços a terceiros compreende a transferência de qualquer das atividades da contratante, inclusive a atividade principal, à empresa prestadora de serviços.  Assim, a Lei n. 6.019/1974 sofre nova alteração: 

Art. 4º-A, “caput”, lei 6.019/74 (redação dada ela lei 13.467/17). Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução. 

Art. 5º-A, “caput”, lei 6.019/74 (redação dada ela lei 13.467/17). Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal.

No ano seguinte, mais precisamente em 30 de agosto de 2018, é julgada a ADPF 324, no Supremo Tribunal Federal, que não deixa margem de dúvidas sobre a possibilidade ampla e irrestrita da terceirização em nosso país. A ação foi ajuizada muito antes da edição da Lei da Reforma Trabalhista, tendo como fundamentos do pedido o fato de que as decisões da Justiça do Trabalho sobre o tema terceirização ofendiam: a) a norma constitucional programática do art. 1º, inc. IV, da Constituição Federal de 1988, que trata dos “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito; b) os princípios constitucionais de proteção à liberdade, inserto no art. 5º, caput, e da legalidade, no art. 5º, inc. II, da Constituição.

O presente trabalho consiste de um comentário sobre o voto proferido no julgamento da ADPF 324, da relatoria do Ministro Barroso, que declarou a constitucionalidade da terceirização na atividade-fim da empresa. No referido julgamento, prevaleceu a tese de que a terceirização será possível nas atividades meio e fim das empresas, vez que é assegurado na Constituição Federal o preceito da livre iniciativa e da livre concorrência:  

2. A terceirização das atividades-meio ou das atividades-fim de uma empresa tem amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que asseguram aos agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade.

Ainda, no entendimento majoritário da Corte máxima da Justiça Brasileira, a terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. Somente o exercício abusivo da sua contratação é que poderá acarretar essas violações:

3. A terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. É o exercício abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações. 

Assim, prevaleceu o entendimento de que a terceirização da atividade-meio ou da atividade-fim será lícita desde que não se configure em um trabalho que desrespeite a dignidade do trabalhador e que se caracterize como um trabalho precário. A terceirização ampla e irrestrita será amparada pelo ordenamento jurídico brasileiro desde que os preceitos constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, de um lado, e do trabalho decente, de outro, se compatibilizem. Em nosso entendimento, a definição do trabalho decente permitirá identificar se a terceirização das atividades de uma empresa, sejam as atividades-meio ou fim, será lícita, de acordo com o entendimento consagrado pela Suprema Corte Brasileira.

O presente artigo está divido em cinco partes. A primeira corresponde a esta introdução, onde tecemos considerações sobre o conceito da terceirização. Na segunda parte, discorre-se sobre e economia de mercado e os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, que parecem ser o aspecto mais valorizado pelo Ministro Barroso em seu voto. A terceira parte é dedicada ao conceito do trabalho decente, que está umbilicalmente relacionado ao princípio da dignidade humana. Na quarta parte, são apresentados dados sobre a terceirização em relação aos direitos do trabalho (em relação à perda de direitos pelo trabalhador). A última seção do artigo corresponde à conclusão.      

2. Economia de mercado, livre iniciativa e livre concorrência 

2.1. Sobre a economia de mercado e seus perigos de acordo com Polanyi

A magistral obra de Karl Polanyi, “A grande transformação”, publicada originalmente em 1944, mostra-se extremamente atualizada num momento em que governantes eleitos para promoverem mudanças socioeconômicas se apegam à chamada ortodoxia do mercado. As opções políticas estão crescentemente submetidas aos imperativos do setor financeiro, o que faz da leitura da obra de Polanyi uma necessidade para se compreender o presente e os riscos para o futuro.

As ideias neoliberais hoje predominantes defendem o afastamento do Estado em relação aos assuntos da economia e a mais ampla liberdade de comércio como garantia de crescimento econômico e desenvolvimento social de um país. Decorrem deste ideário o absenteísmo estatal no mercado de trabalho, a política de privatização de empresas estatais, a livre circulação de capitais e a ênfase na globalização, a abertura das economias para a entrada de produtos e de empresas, a adoção de medidas contra o protecionismo econômico e a diminuição de tributos, dentre outras iniciativas.     

 Uma das principais contribuições de Polanyi é sua crítica ao chamado caráter natural do mercado e a afirmação de uma especificidade do trabalho, da terra e do dinheiro na condição de mercadorias. Mercados existem desde o final da Idade da Pedra, exercendo, todavia, um papel secundário até recentemente. Integravam-se a outras instituições que asseguravam a ordem na produção e distribuição de bens. Apenas a partir do século XIX, os sistemas econômicos passaram a ser comandados, orientados e regulados unicamente por mercados, os quais tratam de abranger, por necessidade, todos os componentes da atividade econômica, incluindo o trabalho, a terra e o dinheiro. No entanto, esses três componentes são especiais. De acordo com Polanyi (2012, p. 78): 

O ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria. Eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro, obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo que é comprado e vendido tem que ser produzido para a venda enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para a atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é meramente fictícia.

Essas mercadorias fictícias são essenciais ao funcionamento de uma economia de mercado. Polanyi alerta, todavia, que a permissão ao mecanismo de mercado para ser “o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra, resultaria no desmoronamento da sociedade” (POLANYI, 2012, p. 78, grifos nossos). No caso singular da força de trabalho, esta “não pode ser impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não utilizada, sem afetar também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar” (POLANYI, 2012, p. 78-79).

Ao dispor da força de trabalho do homem, o sistema econômico dispõe também de sua identidade física, psicológica e moral, razão pela qual a proteção de instituições não mercantis se faz tão necessária. Tanto é assim que, segundo Polanyi, o século XIX foi marcado por um duplo movimento: a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias chamadas genuínas e a restrição do uso indiscriminado das mercadorias fictícias:

Enquanto de um lado os mercados se difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções inacreditáveis, de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro [...] A sociedade se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado autorregulável, e este foi o único aspecto abrangente da história desse período (POLANYI, 2012, p. 82, grifo nosso).

2.2. O primado da necessidade empresarial na decisão da ADPF 324

A decisão dos Ministros do Supremo Tribunal Federal na ADPF 324, ao declarar a licitude da terceirização ampla e irrestrita em nosso ordenamento jurídico, tomou um rumo diametralmente oposto àquele que caracterizou a história social dos séculos XIX e XX, este pelo menos até seu último quartel. Soma-se, com efeito, aos vários processos por meio dos quais, em todo o mundo, a ação do mercado procura se livrar dos cerceamentos a que fora submetida. E faz com que os trabalhadores tenham que aceitar as ressignificações das formas de exploração da força de trabalho, cabendo ao direito atribuir validade às novas formas de precarização.       

Vale nos debruçarmos mais detidamente naquela parte do voto do Ministro Relator Luís Roberto Barroso, que, ao citar um dos fundamentos apresentados pela postulante Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), parece indicar o argumento essencial em favor de sua posição, qual seja, autorizar uma “fórmula” que assegure condições competitivas e “flexibilidade às empresas”. Assim: 

3. A postulante observa, ainda, que não há qualquer lei que restrinja ou vede a terceirização, que pudesse servir de base quer para as limitações instituídas pelo Enunciado 331 do TST, quer para as interpretações que, a pretexto de aplicá-lo, estabelecem novas restrições à terceirização. Argumenta que, ao contrário do que vem sendo praticado pela Justiça do Trabalho, a Constituição prevê expressamente que ao particular será permitido todo comportamento que não lhe tenha sido vedado por lei. Chama atenção para o fato de que a Justiça do Trabalho tem deixado de observar a licitude da terceirização inclusive nos casos em que lei formal expressamente a autoriza, como seria o caso do art. 94 da Lei 9.472/1997. Salienta que esse quadro compromete a geração de empregos formais que ocorreria por meio da terceirização, a competitividade dos produtos brasileiros, tanto no mercado interno quanto no mercado externo, e o tratamento isonômico entre concorrentes, na medida em que a insegurança hermenêutica que se instalou tem gerado decisões conflitantes acerca de terceirizações similares praticadas por agentes econômicos que disputam o mesmo mercado, gerando impactos assimétricos de custos para cada qual. (...) O que está em discussão aqui é uma visão de se manter uma estrutura de produção que, em toda parte do mundo, já foi flexibilizada, que é o modo de produção fordista, em que a empresa precisa concentrar de forma vertical todas as etapas do processo produtivo. Com isso, ela tem um altíssimo custo fixo e não consegue se adaptar, de acordo com a conjuntura, aos aumentos e às reduções de demanda. E, justamente para superar esse paradigma, desde os anos 50 e 60, surgiu um modelo alternativo, tendo como pioneira a empresa Toyota, do Japão, que passou a contratar externamente algumas das fases de produção dos seus automóveis, uma fórmula que permite que você, pela contratação externa, aumente ou reduza a produção na conformidade das leis da oferta e da procura, da demanda do mercado, que infelizmente não é possível revogar por ato judicial ou mesmo por ato legislativo. Portanto, essa fórmula dá flexibilidade às empresas e permite que a empresa contratante se especialize naquilo que ela pode oferecer como diferencial e, por outro lado, beneficie-se da especialização e da eficiência de outras empresas. 

E enfatiza que se trata de privilegiar a “lógica do negócio” diante da realidade de acirramento da concorrência interempresarial:

Não se trata, portanto, de uma divisão entre atividade-meio e atividade-fim; mas de saber se é bom para a lógica do negócio que determinadas atividades sejam prestadas por terceiros que são remunerados e empregam trabalhadores para prestarem aquelas atividades. Isso não é Direito, isso é Economia e não há como fugir desse modelo. Esse modelo de produção flexível é hoje uma realidade em todo o mundo. E, em virtude da globalização dos mercados, constitui um elemento essencial para a preservação da competitividade das empresas.

A terceirização, em que pese não seja um fenômeno novo, alargou sua abrangência no contexto neoliberal. As origens mais recentes desse contexto estão na década de 1980, quando ocorre uma reformulação das políticas macroeconômicas até então praticadas em vários países desenvolvidos como resposta às crises da década anterior. Uma das expressões dessas mudanças foi o chamado “Consenso de Washington”, que se tornou uma espécie de cânone a ser aplicado a todos os países a partir de fins dos anos 1980. Compunha-se de medidas de caráter liberal, tais como: abertura comercial, privatização de estatais, redução dos gastos públicos, e reforma tributária, entre outros. Na década de 1990, diversos países da periferia do sistema, inclusive o Brasil nos governos Collor e FHC, adotaram de forma parcial ou integral as medidas ditadas pelo “Consenso de Washington”. O fenômeno que se chamou de neoliberalismo ganhava maior dimensão. Segundo Belluzzo e Galípolo (2017), essa nova etapa do capitalismo – a neoliberal – não buscou a redução da função do Estado (o tão propagado “Estado mínimo”), pelo contrário, se apropriou do Estado pelas forças da grande corporação transnacional empenhada na concorrência global. O acirramento da competição fez com que as empresas buscassem formas de cooperação e alianças estratégicas, bem como o amparo de políticas públicas para sua sobrevivência num mundo que se globalizava no comércio e nas finanças. 

O novo contexto veio a pressionar a regulamentação da relação de emprego. Na obra intitulada “O Moderno Direito do Trabalho”, publicada em 1994, o jurista brasileiro Luis Carlos Amorim Robortella adiantava que a tendência universal do direito do trabalho seria a flexibilização, com vistas ao desenvolvimento econômico e ao progresso social. Ainda, sustentava que a mais autorizada doutrina entendia que o direito do trabalho é condicionado pela economia – o fato econômico influencia a norma jurídica. Conforme Robortella (1994, p. 25),

[...] não se afigura cientificamente possível sustentar a independência do direito do trabalho no confronto com os fatores econômicos. Em determinada situação de crise, pode ser legítima a desmontagem de estruturas que se revelam inadaptáveis à conjuntura econômica.

O argumento de Robortella reverbera o ideário neoliberal com um olhar prático sobre as condições da tradição brasileira de regulação estatal das relações de trabalho. Assim, defende que a tutela jurídica deva ser pluralizada, deixando de estar centrada apenas na figura do trabalhador isolado e passando a ser analisada num plano mais extenso e variável.  De acordo com sua concepção, outros valores deveriam ser tutelados pelo direito laboral, de forma simétrica ou não, como a sobrevivência da empresa, a geração de empregos e o desenvolvimento econômico. O direito de trabalho perderia a sua razão de ser – a tutela e proteção do trabalhador, sempre o hipossuficiente na relação de trabalho – para sintonizar-se com a realidade econômica. Tal reconstrução teórica do direito do trabalho, no seu entendimento, contribuiria para amenizar as crises econômicas e sociais.     

A realidade econômica a que o autor está atento é a da globalização. Esta provoca uma revolução na estrutura econômica mundial, com transformações na organização do sistema de produção, no ritmo de fusões e aquisições de empresas e na centralização da propriedade. Ampliam-se as cadeias globais de valor, fenômeno decorrente da reorganização empresarial em curso desde fins do século XX, nas quais as empresas distribuem as suas operações pelo mundo – desde o projeto de produtos até a fabricação de peças, a montagem e a comercialização. Existem, neste contexto, incentivos para que empresas com inserção na economia internacional “desverticalizem” sua produção. Isso altera a concorrência empresarial ao reduzir custos de produção e diminuir os riscos do negócio. A economia mundial passa a ser crescentemente dominada por poucas empresas (conglomerados empresariais) e instituições financeiras, na sua maioria, originárias de países altamente desenvolvidos.

  Essa nova empresa globalizada e fácil deslocamento do capital financeiro – muitas vezes o acionista principal das grandes empresas que produzem bens e serviços – exercem forte poder sobre os trabalhadores. O acirramento da concorrência em plano global e a tendência ao monopólio acabou por debilitar a força dos sindicatos e, consequentemente, dos trabalhadores, levando à contração dos direitos e garantias sociais, vistos como um entrave à liberdade do capital. 

Este é o contexto econômico mundial que serviu de pano de fundo para que a terceirização de qualquer atividade das empresas viesse a prevalecer no entendimento da mais alta Corte do Judiciário brasileiro. O Ministro Barroso explicita em seu voto que a terceirização é uma exigência da globalização, sendo imprescindível para a sobrevivência das empresas brasileiras, conforme destacamos: 

Esse modelo de produção flexível é hoje uma realidade em todo o mundo. E, em virtude da globalização dos mercados, constitui um elemento essencial para a preservação da competitividade das empresas. Tanto é assim que quase todos os países relevantes do mundo admitem a terceirização. Ela é amplamente praticada nos Estados Unidos, na Alemanha, na Áustria, nos Países Escandinavos, na Espanha, no Uruguai; e é praticada com limitações semelhantes às que devem vigorar no Brasil – como estou aqui propondo – em países como França, Reino Unido, Itália, Chile, Argentina, México, Colômbia, Peru e diversos outros países da América Latina, mas não a Venezuela. Portanto, Presidente, este é o contexto em que se debate a terceirização. Ela é muito mais do que uma forma de reduzir custos, é uma estratégia de produção imprescindível para a sobrevivência e competitividade de muitas empresas brasileiras, cujos empregos queremos preservar.

Nessa mesma linha de raciocínio, o STF entende que os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência se impõem na análise da licitude da terceirização de qualquer atividade das empresas:    

Quanto aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, esses princípios asseguram às empresas a liberdade para o desenvolvimento de atividades econômicas e das suas estratégias de produção em busca dos melhores resultados, maior eficiência e maior competitividade. Desde que respeitados os direitos mínimos previstos na Constituição e na legislação, a Constituição não impõe adoção de um modelo específico de produção e não impede o desenvolvimento de estratégias flexíveis. E, portanto, a Constituição não veda nem implícita nem explicitamente a terceirização. Essa é uma projeção ideológica de quem a interpreta com viés antigo, com todo respeito a quem pense diferente.

Assim, ao acatar o voto do Ministro Barroso no julgamento da ADPF 324, o STF ergue a defesa da livre iniciativa e da livre concorrência e a busca pelas empresas de estratégias para uma maior eficiência e produtividade das empresas, como fundamentos básicos para a decisão. Parece ignorar – ou colocar em plano inferior – a valoração social do trabalho e a dignidade da pessoa humana, que também são garantias constitucionais. Examinemos, pois, essas questões sob os ângulos doutrinário e fático. 

3. O princípio da dignidade humana – trabalho decente e valorização do trabalho   

Considerando os fundamentos do voto do Ministro Relator da ADPF 324, que prestigia os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, a fim de legalizar a terceirização ampla e irrestrita, ressalvando a necessidade de que sejam respeitados os direitos mínimos previstos na legislação e na Constituição, importante resgatarmos o princípio da dignidade humana. 

O princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral inerente à pessoa – todo o ser humano é dotado deste preceito. Trata-se de um princípio máximo do Estado Democrático de Direito e está elencado no rol de princípios fundamentais da Constituição Federal Brasileira de 1988: 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;   

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

O princípio da dignidade humana se constitui na premissa fundamental do Estado Democrático de Direito que, além de estabelecer direitos que garantam uma vida saudável e justa aos cidadãos, também deve proporcionar o desenvolvimento do ser humano em um meio capaz de promover a sua integração e a evolução de sua dignidade. Elencada como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana está retratada no primeiro artigo da Carta Magna antes do capítulo referente à organização do Estado, o que demonstra a atenção especial que o legislador constituinte conferiu aos direitos do cidadão (SCHMITZ, 2012). 

Uma das primeiras referências ao princípio da dignidade humana consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em Paris, no ano de 1948. Com efeito, no “Preâmbulo”, a dignidade é mencionada nos seguintes termos: 

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo [...].

Ainda, a Declaração Universal dos Direitos do Homem vincula a dignidade humana ao trabalho ao dizer que: 

Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

O trabalho decente está umbilicalmente relacionado à dignidade humana. O conceito de trabalho decente foi formulado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), no ano de 1999, na 87ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Genebra. Trabalho decente é, segundo a OIT, um trabalho produtivo, devidamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, e que garanta uma condição digna de vida ao trabalhador. Trata-se de um trabalho que permite a satisfação das condições de vida pessoais e familiares, tais como: alimentação, saúde, segurança, moradia e educação. E que, além disso, possa sustentar alguma proteção nos impedimentos do trabalho (doença, acidente e desemprego, por exemplo) e a renda necessária ao trabalhador quando chegar a sua aposentadoria (COSTA, 2010). 

No entendimento da OIT, a noção de trabalho decente possui quatro objetivos primordiais: (1) o respeito aos direitos no trabalho, (2) a promoção do emprego produtivo e de qualidade, (3) a ampliação da proteção social, e (4) o fortalecimento do diálogo social.  No que se refere ao objetivo de respeito aos direitos no trabalho, estão presentes a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado, a abolição efetiva do trabalho infantil, e a extinção das formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação (OIT, s.d.). Ainda sobre os direitos do trabalho, a OIT preconiza a observância das normas internacionais de trabalho (convenções e recomendações da OIT), sendo que, em relação ao trabalho decente, estas correspondem a oito convenções ou recomendações que fazem parte da Declaração Relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho. 

Em relação ao segundo objetivo, a promoção de emprego produtivo e de qualidade, a OIT defende que não basta a geração de empregos, mas é necessária também a garantia de um padrão mínimo de qualidade do trabalho. E isso contempla uma combinação de fatores que extrapolam a dimensão econômica, acrescentando outras dimensões de caráter normativo, de segurança e de representação.   

A extensão da proteção social, terceiro objetivo do trabalho decente conforme a OIT, relaciona-se aos riscos físicos e psíquicos a que os trabalhadores se expõem, buscando a garantia de direitos associados à maternidade, saúde e aposentadoria, a proteção em situações de desemprego, etc.     

Quanto ao quarto objetivo, que trata do diálogo social, a OIT defende que os trabalhadores tenham voz e representação em todas as questões que lhes dizem respeito. Que o diálogo social seja adotado como método para compor e equilibrar as diferenças no trabalho.    

  Aplica-se o conceito de trabalho decente a todas as formas de trabalho, seja no mercado formal ou no informal. A definição de um trabalho como decente não está na condição de trabalho estruturado (mercado formal de trabalho), mas os direitos e garantias que o acompanham. Assim, podemos falar de trabalho decente nos casos de assalariados não formalizados, de trabalhadores por conta própria, de trabalhadores terceirizados e de trabalhadores à domicílio, dentre outros, segundo preencham os objetivos elencados pela OIT.

O conceito de trabalho decente relaciona-se, igualmente, à busca pela superação das condições de pobreza e de alta desigualdade que assolam a maior parte das nações. O objetivo central do trabalho decente é uma vida digna para homens e mulheres, com geração de empregos produtivos e de qualidade, extensão da proteção social e fortalecimento do diálogo social. Na visão da OIT, somente o trabalho decente poderá garantir a superação da pobreza e da exclusão social (site OIT/Brasília/Trabalho Decente).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 promoveu uma alteração na função que o Estado e o Direito assumem perante a realidade do capital. A atual Carta Magna, como assinalado, tem como escopo central a garantia da dignidade humana, sintetizada na fórmula da busca do bem para todos. Consagra que todos os indivíduos são destinatários das normas jurídicas: no caso dos trabalhadores que vendem a sua força de trabalho, são sujeitos de direitos que devem ser protegidos de qualquer forma de exploração. Trouxe, portanto, os direitos trabalhistas ao rol dos direitos e garantias fundamentais, na tentativa de minimizar os males de uma sociedade capitalista. 

Segundo Maurício Godinho Delgado (2007), a Constituição Federal de 1988 consagrou quatro princípios afirmativos do trabalho, a saber, o da valorização do trabalho, o da justiça social, o da submissão da propriedade à sua função socioambiental, e o princípio da dignidade da pessoa humana. São princípios constitucionais do trabalho:  

A valorização do trabalho é um dos princípios cardeais da ordem constitucional brasileira democrática. Reconhece a Constituição a essencialidade da conduta laborativa como um dos instrumentos mais relevantes de a?rmação do ser humano, quer no plano de sua própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar e social (DELGADO, 2007, p. 15). 

  O Estado concebido pela Constituição Federal de 1988 exalta a justiça social, tanto que o art. 170, caput, dispõe que a ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, buscando assegurar a existência de uma vida digna a todos. Ainda, o art. 3º consagra como objetivos fundamentais da República brasileira:  

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; 

II – garantir o desenvolvimento nacional; 

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; 

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A Constituição Federal de 1988 consagrou o trabalho regulado e que assegura direitos ao trabalhador como o mais importante veículo de afirmação comunitária dos seres humanos na sociedade capitalista e também o mais relevante instrumento de afirmação da democracia na vida social. Em outras palavras, a democracia busca garantir poder àqueles que são destituídos de riqueza material e financeira. E o trabalho se configura como o meio pelo qual a massa da população adquire esse poder social. O Constituinte de 1988 valorizou o trabalho como princípio, fundamento, valor e direito social (DELGADO, 2007).       

O Estado Social, consagrado pela Carta Magna, é incompatível com qualquer forma de precarização das relações de trabalho. E a terceirização, seja em atividade-meio ou atividade-fim, no âmbito público ou privado, revela-se, muitas vezes, um trabalho precário, ignorando os objetivos primordiais do trabalho decente.

4. Evidências sobre a terceirização – o mundo real 

Nos debates acerca de uma legislação sobre terceirização, esteve sempre presente a preocupação com os direitos dos trabalhadores. O processo de terceirização de uma atividade, via de regra, pressupõe a transferência do trabalhador de uma empresa, normalmente de maior porte, para outra empresa, em geral de menor porte; de uma empresa melhor estruturada para outra menos organizada. Esta transferência, por si só, já representa uma ameaça aos direitos dos trabalhadores, normalmente mais extensos e garantidos nas grandes empresas. A divisão dos trabalhadores na empresa contratante (terceirizada) e na prestadora do serviço enfraquece a organização de classe, o que impacta diretamente na sindicalização e na mobilização de uma categoria de trabalhadores. Tal questão enfraquece a negociação coletiva e, via de consequência, os direitos que são ampliados ou criados pela via negocial. Ainda, a própria estabilidade é afetada pela terceirização – as empresas de menor porte, criadas por esse fenômeno da terceirização, não conseguem cumprir os direitos mínimos da legislação ordinária.    

Os dados que vêm sendo compilados indicam que a terceirização implica a contratação de trabalhadores por salários menores, maiores jornadas de trabalho, exposição maior a riscos de acidentes e de doenças profissionais. Em especial, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) tem produzido estudos sobre o impacto da terceirização nas condições de trabalho, apontando uma precarização do trabalho (DIEESE, 2017). A evidência colhida nesses estudos contesta o entendimento do Ministro Barroso, quem, numa tentativa incompleta de dissociar a terceirização da precarização das relações de trabalho, assim escreve:     

Há um argumento que se tornou mais retórico do que propriamente substantivo, que é o da precarização da relação de emprego. A questão da precarização: primeiro, há problemas nas relações de emprego com terceirização ou sem terceirização. Com todas essas restrições que há à terceirização, existem 5 milhões de reclamações trabalhistas no Brasil. E elas não são devidas à terceirização por evidente.

Uma das características do mercado de trabalho brasileiro nos anos recentes é o rápido crescimento do trabalho terceirizado. Conforme levantamento do DIEESE (2017), o número de postos sujeitos à contratação direta (sem empresa interposta) cresceu 28,7% entre 2007 e 2014, ao passo que os empregos terceirizados tiveram um crescimento de 46,5% no mesmo período. Em 2014, os terceirizados já representavam cerca de um quarto do vínculo formal de emprego. Uma das características principais desse tipo de emprego é a elevada rotatividade. E no período analisado a taxa de desligamento nos vínculos terceirizados aumentou 71,4% vis-à-vis 57,7% nos demais empregos. Em geral, quanto maior a rotatividade, menor a estabilidade e pior a qualidade do trabalho. A insegurança quanto à permanência no emprego gera óbvios efeitos negativos na organização da vida pessoal e familiar do trabalhador. A baixa qualidade do trabalho se expressa, dentre outros, na menor remuneração, vez que um vínculo empregatício menos duradouro implica menor remuneração, impede progressão na vida laboral e impacta adicionais de renda, como o adicional por tempo de serviço. 

Outro estudo empírico de interesse é o dossiê publicado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT, 2014). A evidência apresentada indica a precarização das relações de trabalho dos terceirizados, inclusive com ameaça à vida desses trabalhadores, em decorrência de estratégias de lucratividade baseadas na redução ou supressão de direitos. A Tabela 1 apresenta uma comparação de três importantes condições do trabalho – remuneração média, jornada semanal contratada e tempo no emprego – nos setores chamados de “tipicamente contratantes” e “tipicamente terceirizados”, a partir de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do ano de 2013. Os dados mostram que, nos setores tipicamente terceirizados, a remuneração média é 24,7% menor, trabalham-se três horas a mais por semana e os contratos de trabalho duram menos de metade do que nos setores tipicamente contratantes.

Tabela 1 – Condições de trabalho e terceirização, 2013

Condições de trabalho

Setores tipicamente contratantes (1)

Setores tipicamente terceirizados (1)

Diferença (%) Terceirizados / Contratantes

Remuneração (R$) (2)

2.361

1.777

- 24,7 

Jornada semanal contratada (horas)

40

43

+ 7,5

Tempo de emprego (anos)

5,8

2,7

- 53,5

Fonte: CUT (2014). Elaboração dos autores.

Nota: os dados referem-se a médias de cada condição de trabalho.

  1. Setores agregados segundo Class/CNAE2.0, exclusive setores da agricultura.
  2. Remuneração média em dezembro.

Uma das facetas mais cruéis da terceirização relaciona-se às doenças, acidentes e mortes decorrentes do trabalho. Há indicações de que os trabalhadores terceirizados estão mais sujeitos a acidentes e mortes no local de trabalho em virtude, provavelmente, da falta de suficiente investimento em medidas preventivas (falta de equipamentos de proteção e treinamentos) e do descumprimento da legislação sobre segurança e medicina do trabalho. A Figura 1 apresenta o número de acidentados fatais em empresas terceirizadas do setor de energia elétrica no Brasil entre 2003 e 2011. Nesses nove anos, houve um total de 567 acidentes fatais em empresas terceirizadas no setor elétrico, um número quase cinco vezes maior do que o das fatalidades com empregados próprios.

Os dados apresentados, ainda que limitados, indicam a incongruência dos fundamentos do Ministro Barroso no julgamento da ADPF 324. A terceirização é – infelizmente – sinônimo de precariedade nas relações de trabalho. A alegada especialização do trabalho, um dos motivos que justificariam a terceirização, pode ser observada em alguns poucos setores, como por exemplo, na área de tecnologia da informação (TI). Nessa área, tendo em vista o montante e a rotação do investimento em tecnologia, é comum as empresas terceirizarem atividades como forma de manter a qualidade do serviço. Os salários praticados pelas empresas terceirizadas em TI não são relativamente mais baixos. Segundo dados colhidos pela Associação Brasileira de Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TERCEIRIZADOS, 2015), a remuneração dos terceirizados de empresas de TI é até 2,2 vezes maior do que a dos demais empregados. Esta, não obstante, é uma realidade específica, que não retira da terceirização em geral sua característica de precarização das relações de trabalho.

Em sua análise sobre a produção científica de estudos sobre o fenômeno da terceirização, Paula Marcelino e Sávio Cavalcante concluem que a evidência é fortemente comprobatória de que a terceirização leva à precarização:

[...] é possível dizer, com boa segurança, que a grande maioria das pesquisas revelou claros indícios que comprovam a segunda tendência, isto é, de que as terceirizações levam à precarização (em maior ou menor grau) das relações de trabalho e emprego. Segundo Druck (2011), dado o acúmulo de pesquisas feitas nas últimas duas décadas, constata-se que a terceirização causou efetivamente a precarização das condições de trabalho no Brasil. Na verdade, seria interessante mudar a própria pergunta: nos casos em que é possível comparar situações anteriores de enquadramento ocupacional e resultados posteriores devidos a processos de terceirização, houve, em algum lugar do país, melhoria das condições de trabalho e emprego (salários, direitos, segurança e vínculos sindicais) em relação às condições anteriores? Até o presente momento, desconhecemos casos em que a resposta a essa pergunta seja positiva (MARCELINO; CAVALCANTE, 2012, p. 336).    

Vale dizer, as análises dos processos de terceirização assentadas em evidência empírica, provavelmente desconhecidas do Ministro Barroso, nada possuem de retóricas e revelam que as condições gerais dos trabalhadores terceirizados estão longe de serem consideradas dignas.         

5. Conclusão

O Ministro Barroso, entre os vários argumentos que usou para defender a legalidade da terceirização em nosso sistema jurídico, indicou a necessidade da adaptação do direito obreiro a uma nova realidade do mundo do trabalho, que, segundo ele, nada teria a ver com escolhas ideológicas ou filosóficas. Apela, ainda, ao risco do desemprego que assombra as novas gerações como se a retirada de direitos dos trabalhadores viesse a produzir mais postos de trabalho. Destacamos, nesse sentido, o seguinte trecho do voto do relator na ADPF 324: 

Eu estou pontuando este aspecto para deixar claro que este não é um debate entre progressistas e reacionários, este é um debate e esta é uma discussão sobre qual é a forma mais progressista de se assegurarem emprego, direitos dos empregados e desenvolvimento econômico. Porque, se não houver desenvolvimento econômico e nem sucesso empresarial das empresas, não haverá emprego, renda ou qualquer outro direito para os trabalhadores. Em um momento em que há 13 milhões de desempregados e 37 milhões de trabalhadores na informalidade, é preciso considerar as opções disponíveis, sem preconceitos ideológicos e sem apegos a dogmas antigos. Assim é como me parece. 

Não negamos que o mundo do trabalho vem sofrendo mudanças estruturais e que isso afetará a relação entre empregados e empregadores, bem como os níveis de emprego. O mundo já vislumbra uma era de robôs sob os impactos de uma nova Revolução Tecnocientífica, denominada de “Quarta Revolução Industrial” ou “Indústria 4.0”. Teme-se que, desta vez, de forma bem mais intensa do que as situações de mudança de estrutura vivenciadas pela humanidade desde a Primeira Revolução Industrial, as máquinas substituirão a força de trabalho. Ademais, segundo Cheng Li (2016), diferentemente do que ocorreu nas revoluções industriais do século XIX e da primeira metade do século XX, que levaram ao crescimento de uma classe proletária e, depois, de uma classe operária, o avanço da Inteligência Artificial fará surgir uma classe social sem função econômica, sem utilidade produtiva.

Cabe perguntar se a solução desses problemas seria a flexibilização das relações de trabalho, nela incluída a terceirização. A terceirização assegurará empregos e desenvolvimento econômico como preceitua o Ministro Barroso? Ainda que exista teoria que vincule a redução de direitos trabalhistas ao aumento dos níveis de emprego, não há evidência empírica robusta que ateste essa associação. Há, todavia, informação suficiente que demonstra a piora na qualidade de vida dos terceirizados.

Passados mais de dois anos desde o início da vigência da Lei n. 13.467/2017, que assegurou a livre terceirização em nosso país, o mercado de trabalho testemunha o crescimento da informalidade e da desigualdade socioeconômica, com um número alarmante de pessoas retornando à situação de extrema pobreza. No período de 2017 a 2019, o número de desempregados e a taxa de desemprego vitualmente estacionaram nos níveis legados pela recessão de 2015-2016. Se havia alguma esperança de que medidas de liberalização da terceirização e a própria reforma trabalhista ampla de 2017 conduziriam à reversão do dramático quadro de desemprego e empobrecimento da população, esta se viu frustrada. E assim permanecerá sem que haja um aumento da demanda que justifique a retomada mais forte da produção e dos empregos. Basta recordar a trajetória do mercado de trabalho brasileiro na primeira década e até os primeiros anos da segunda década deste século para constatar que os aumentos nos níveis de emprego e de renda, assim como a redução da pobreza e da desigualdade, se associam ao crescimento econômico e a políticas públicas específicas. As políticas que reduzem direitos, como a terceirização sem limites e a reforma trabalhista de 2017, produzem apenas aquilo para o que foram concebidas: reduzir direitos. E a consequência no mundo real é a piora nas condições de trabalho e de vida de amplos contingentes da população.

A decisão do STF na ADPF 324 constitui, sem sombra de dúvida uma vitória da onda neoliberal, impulsionada pelo advento de nova revolução tecnológica e que busca restituir aos empregadores o poder discricionário no mercado de trabalho. Liberdade para contratar sem os entraves da legislação trabalhista e dos sindicatos é sua palavra de ordem. Acreditam conduzir o país ao futuro, mas estão apenas repisando o passado de autorregulação do mercado de trabalho. Colherão os riscos apontados por Polanyi de dissolução do tecido social. 

As piores condições de trabalho no Brasil, ao início da terceira década do século XXI, não decorrem apenas da legalização de uma terceirização ampla e irrestrita, mas indicam que os fundamentos do voto do Ministro Barroso são equivocados ou sugerem que essa forma de contratar será em geral abusiva, vez que acarreta precarização das relações de trabalho e afeta a dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho – princípios constitucionais que devem estar sintonizados com o da livre contratação e do livre comércio. A proteção social tem que ser vista como o remédio que inibe os atos predatórios do capitalismo.

Fernanda Palombini Moralles é advogada e atua na na área do Direito Trabalhista e Sindical

Artigo apresentado na conclusão da Especialização em Relações de Trabalho pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, em 2019.  

Referências

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BIAVASCHI, Magda Barros; DROPPA, Alisson (2014). A dinâmica da regulamentação da terceirização no Brasil: as súmulas do Tribunal Superior do Trabalho, os projetos de lei e as decisões do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direitos Sociais, n. 41, p. 121-145.

COSTA, Mônica Oliveira da (2010). Trabalho decente segundo estudos da Organização Internacional do Trabalho. Revista Jus Navegandi, Teresina, ano 15, n. 2649, out.

CUT – Central Única dos Trabalhadores (2014). Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha. Dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. São Paulo.  

DELGADO, Maurício Godinho (2007). Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, n. 2, p. 11-39. 

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (2017). Terceirização e precarização das condições de trabalho. Nota Técnica, n. 172, mar.  

LI, Cheng (2016). Emprego e bem estar social na era da inteligência emocional. Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 34, p. 13-22, jul./dez.   

MARCELINO, Paula; CAVALCANTE, Sávio (2011). Por uma definição de terceirização. Cadernos CRH, Salvador, v. 25, n. 65, p. 331-346, ago.

OIT – Organização Internacional do Trabalho. Brasília. Trabalho decente. Disponível em    https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm. Acesso em: 18/11/2019.

POLANYI, Karl (2012). A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier.   

ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim (1994). O moderno direito do trabalho. São Paulo: LTr.

SCHMITZ, José Carlos (2012). A dignidade humana, o valor social do trabalho e a aplicação do princípio da proteção no Direito do Trabalho no Brasil. Revista Jurídica – CCJ, v. 16, n. 32, p. 121-138, ago./dez.

TERCEIRIZADOS do setor de TI ganham até 2,2 vezes mais que os demais (2015). Disponível em: https://www.amcham.com.br/noticias/juridico/terceirizados-do-setor-de-ti-ganham-ate-2-2-vezes-mais-que-os-demais-9312.html.

Material de pesquisa

Petição inicial da ADPF 324. Disponível em: www.stf.jus.br.

Voto do relator da ADPF 324. Disponível em: www.stf.jus.br.