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Trabalho presencial de gestantes em tempos de Covid-19: o PL 2.058/2021 como falácia protetiva

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Por: Willian Alves Garcia

Tramita perante o Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 2.058/2021, cuja justificação manifesta seria disciplinar as atividades de teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho à distância de trabalhadoras gestantes, enquanto perdurar a pandemia do novo coronavírus. Entretanto, pela leitura do texto substitutivo percebe-se que, em verdade, o projeto busca relativizar as garantias trazidas pela Lei n. 14.151/2021, que determinou que as empregadas gestantes permaneçam afastadas do trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração, ficando à disposição para exercer atividades fora da empresa.

O referido projeto estabelece que à empregada gestante que estiver vacinada não se atribui o direito ao trabalho fora da empresa, bem como estipula que, para as gestantes não vacinadas, se não for possível o exercício do trabalho fora da empresa, o empregador poderá estipular a suspensão do contrato, hipótese em que a empregada terá direito ao Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (MP 1.045/2021). Os argumentos são de cunho exclusivamente econômicos, como a alegada injustiça em atribuir ao empregador os custos com a empregada gestante cujas atividades são incompatíveis com o trabalho remoto – a justificação reconhece, inclusive, que tais gastos seriam um “fardo” para o empregador.

Em outras palavras, o que se pretende com a aprovação do projeto é afastar as garantias trazidas pela Lei n. 14.151/2021, desconsiderando, todavia, a grave situação sanitária ainda enfrentada em razão da Covid-19. Obrigar gestantes a retornarem ao trabalho enquanto vigente a situação pandêmica, ainda que vacinadas, vai de encontro com as recomendações científicas e conhecimentos até aqui existentes sobre a doença, haja vista que os possíveis efeitos por ela trazidos ainda são desconhecidos em sua totalidade, o que pode acarretar, em potência, danos irreparáveis tanto à gestante quanto ao nascituro.

Ademais, o índice de óbitos de gestantes e puérperas em razão da Covid-19 é alarmante. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou dados que demonstram que, no Brasil, a taxa de letalidade para essa população chega a 7,2%, enquanto os números gerais para as demais populações apontam para 2,8% [1]. O mesmo estudo ainda destaca que as gestantes podem evoluir para formas graves da doença, especialmente aquelas que estão entre 32 e 33 semanas de gestação, acarretando em descompensação respiratória e até mesmo em parto prematuro.

É inegável que desde a reforma trabalhista de 2017 tenta-se afastar a proteção da mulher gestante e lactante contra o trabalho insalubre, garantida pela CLT. Vale destacar que o legislador reformista incluiu na Lei 13.467/2017 o artigo 394-A, que ressalvou o direito das gestantes e lactantes manterem-se afastadas do trabalho insalubre, mas condicionou tal afastamento à apresentação de atestado específico de saúde assim o recomendando. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5938, decidiu, por 10 votos a 1, pela inconstitucionalidade da inovação legal, que exigia a apresentação de atestado médico, por entender que a proteção à maternidade e ao nascituro são direitos irrenunciáveis.

Em que pese a mencionada decisão do STF tenha declarado a inconstitucionalidade do trabalho insalubre da gestante e da lactante, o Projeto de Lei n. 2.058/2021 parece desconsiderar a proteção maior trazida pelo aludido julgado.  Foi reconhecido pela Corte Superior que a proteção da gestante contra ambientes insalubres é instrumento social que resguarda não somente elas, como também o nascituro, possibilitando o pleno desenvolvimento do recém-nascido, sendo esses direitos irrenunciáveis e inafastáveis. 

Dessa forma, é possível concluir que o PL 2.058/2021 relativiza o direito à vida, tendo em vista que a obrigatoriedade do retorno ao trabalho da gestante já vacinada pode acarretar em danos irreparáveis tanto para a própria grávida quanto para o nascituro, considerando que os efeitos da Covid-19 ainda são desconhecidos e que as vacinas existentes podem ainda não oferecer proteção integral contra o vírus. Verifica-se flagrante violação ao direito social previsto no caput do artigo 6º da Constituição Federal, qual seja, a proteção à maternidade, o qual é a razão para outros tantos direitos sociais, como a licença-gestante e a proteção contra a despedida arbitrária. Importante salientar, também, que o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 2º, afirma que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, resguardando, inclusive, o direito mais sagrado de todos, que é a proteção à vida.

Por fim, afastar do trabalho gestantes que desempenham atividades incompatíveis com o trabalho à distância, suspendendo-lhes o contrato de trabalho, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, considerando que o trabalho é ferramenta essencial para a manutenção de uma vida digna. Tal medida impõe punição às mulheres pela sua própria condição humana, sendo claro ato discriminatório, pois elege a trabalhadora grávida como culpada pelas crises sanitária e econômica geradas pela pandemia, imbuindo que devem sacrificar seus contratos de trabalho em favor da mitigação de supostos danos arcados pelos empregadores.

Willian Alves Garcia é advogado na área do Direito Trabalhista e Sindical

 

Referências:

[1] https://portal.fiocruz.br/noticia/observatorio-covid-19-destaca-alta-mortalidade-materna