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Proteção constitucional do trabalho da mulher e o princípio da vedação ao retrocesso social

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Por: Larissa Moreira da Rosa

A proteção do trabalho da mulher está situada no âmbito dos direitos sociais constitucionalmente previstos, atua como mecanismo para a concretização material do princípio da igualdade disposto na Constituição Federal de 1988 (CF/88) e tem papel fundamental na busca pela igualdade de gênero. Todavia, eventuais alterações legislativas podem resultar em regresso nas salvaguardas outrora conquistadas, o que enseja a aplicação das concepções relativas ao princípio da vedação do retrocesso social, na condição de limitador diante das mudanças tendentes à obstrução das normas protetivas. Daí a importância da análise da compatibilização existente entre o princípio da vedação do retrocesso social e a proteção do trabalho da mulher.

A divisão do trabalho entre homens e mulheres sofreu mudanças significativas ao longo da história. Na maior parte do tempo, essa divisão foi marcada mediante a atribuição de tarefas relacionadas à esfera pública e ao universo político e econômico exclusivamente aos homens, enquanto às mulheres eram destinadas as funções privadas de reprodução e de cuidado dos filhos e da casa, o que ensejou a formação de uma sociedade marcada por opressões e abusos contra as mulheres[1]. Apesar disso, o trabalho da mulher no Brasil existe há centenas de anos, desde os primórdios da colonização, passando pelo trabalho das mulheres negras escravizadas, pelo proletariado feminino formado em sua maioria por imigrantes no início do século XX, pela maior participação decorrente das lutas feministas a partir da década de 1970, até a participação feminina na elaboração da CF/88, importantíssima para a positivação e para o aprimoramento de diversos direitos das mulheres[2].

A igualdade, não só a formal, mas a material, está presente na CF/88 de forma plena[3], havendo cuidado no sentido de assegurar a igualdade mediante a implementação de discriminações positivas, que visam a conter a discriminação de gênero no ambiente de trabalho. Nesse âmbito, a proteção do trabalho da mulher tem como premissa a igualdade material e é um instituto que vem passando por alterações diante da evolução social decorrente da busca pela igualdade de gênero. Desse modo, à doutrina jurídica e à jurisprudência dos Tribunais cabe o exame de como a igualdade prevista constitucionalmente é concretizada na esfera fática, o que enseja o emprego da discriminação positiva[4] mediante a implantação de ações afirmativas que assegurem as garantias das mulheres no mercado de trabalho, considerando as suas peculiaridades biológicas e físicas em comparação aos homens, além da superação da histórica discriminação sofrida por elas, o que resultou séculos de submissão e de falta de oportunidades profissionais.

Nesse contexto, os dispositivos relativos às normas diferenciadoras referentes ao trabalho da mulher nas esferas trabalhista (mediante as disposições especiais contidas no Capítulo III, o qual trata “Da proteção do trabalho da mulher”), previdenciária (representado pela aposentadoria diferenciada no que tange à idade mínima) e política (evidenciado pelas cotas legislativas) são instrumentos absolutamente relevantes e necessários. Desse modo, foi necessária a criação de proteções legais que buscassem equalizar o contraste existente no mercado de trabalho diante da vulnerabilidade do trabalho feminino em comparação à valorização do trabalho masculino e da forte desigualdade de gênero ainda existente na sociedade brasileira.

A proteção do trabalho da mulher está presente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde a sua promulgação, ocorrida em 1943, sendo que o capítulo próprio relativo ao tema dispõe a respeito das garantias que pretendem viabilizar a inserção das mulheres no mercado de trabalho, possibilitando-as que exerçam atividades remuneradas em atenção às suas condições específicas e visando a não ocorrência de situações discriminatórias. No âmbito da CF/88, a necessidade de proteção específica ao labor feminino está presente no art. 7º, inciso XX, que garante a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”. Tal previsão é apresentada como direito dos trabalhadores urbanos e rurais e está disposta no rol dos direitos sociais, os quais são classificados como direitos fundamentais de segunda dimensão, relacionados à valorização da igualdade material, e buscam assegurar que as desigualdades existentes entre as pessoas na esfera fática sejam compensadas.

No Brasil, os direitos sociais constituem importantes conquistas da sociedade, resultantes de um grande período de lutas nas quais se buscava que fosse assegurado o mínimo necessário para a garantia da existência digna da pessoa, o que possibilitou a inclusão dos direitos previstos nos artigos 6° e seguintes da CF/88. Nesse âmbito, o princípio da vedação do retrocesso social dispõe que os direitos sociais assegurados não podem ser objeto de modificações que configurem retrocesso, sob pena de ofensa constitucional, de modo que tem como característica a necessidade de manutenção dos direitos conquistados, os quais não podem, em geral, sofrer revogação – exceto se houver nova previsão legal que assegure garantias maiores ou iguais.

Esse princípio originou-se no contexto europeu, especialmente em meio à crise econômica sofrida pela Alemanha nos anos 1970, assim como em Portugal, a partir do constitucionalismo dirigente advindo da Revolução dos Cravos de 1974. Seu conceito está atrelado à proteção dos direitos fundamentais, especialmente em relação às garantias de caráter social, sendo acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro[5], tanto de forma implícita, como de forma explícita, mediante reconhecimento doutrinário, jurisprudencial e no âmbito do direito internacional, por meio da noção de progressividade[6]. Nessa conjuntura, a legislação relativa à proteção do trabalho da mulher deve ser compatível a sua concepção, de modo que qualquer alteração tendente a reduzir ou suprimir direitos dessa esfera deve passar pelo controle e pela regulação das exigências atinentes à vedação do retrocesso, devendo ser justificadas e fundamentadas em observância permanente à dignidade da pessoa humana, haja vista que eventual interesse social não pode sobrepujar o princípio basilar do Estado Democrático de Direito.

Sendo assim, considerando a tendência de alteração das disposições legais pelo legislador, assim como eventual edição de atos administrativos no âmbito do Poder Executivo, o princípio do retrocesso social atua como limitador de previsões contrárias à proteção do trabalho da mulher, devendo ser observado igualmente na esfera judicial quando na análise de discussões a seu respeito[7]. Ou seja, para que a proteção do mercado de trabalho da mulher seja devidamente preservada, é preciso que haja controle legislativo e constitucional das normas relativas ao tema, visando ao afastamento de previsões que possam colidir com os valores atrelados a esse instituto. Desse modo, os limites que a vedação ao retrocesso social impõe às alterações legislativas residem, essencialmente, na ideia de preservação dos interesses da sociedade e da busca pela igualdade de gênero.

Ocorre que enquanto princípio constitucional implícito e geral, a proibição do retrocesso social não tem caráter absoluto, de forma que a avaliação de sua pertinência e aplicação ao caso concreto exige a formulação de uma análise lógica mediante a ponderação de determinados princípios e parâmetros. Nesse sentido, primeiramente, cumpre dizer que as providências de natureza retrocessiva limitam-se ao mínimo existencial e ao núcleo essencial de direitos fundamentais[8]. A observância do princípio da igualdade, nas esferas formal e material, também fundamenta a aferição de ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social, haja vista que, caso a medida retrocessiva não proponha uma discriminação inadequada ou arbitrária ela pode não ser classificada como inconstitucional[9], devendo observar relevância dos direitos sociais no ordenamento jurídico.

Ademais, para que a medida não seja considerada inconstitucional por ofensa ao princípio da vedação do retrocesso social, é preciso averiguar se ela observa a orientação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, visto que é preciso que exista a garantia de uma previsibilidade mínima relativa ao modo de operar do Estado, além da necessidade de observância dos direitos adquiridos, o que enseja fundamentação extensa e providências transitórias na hipótese de proposta de reversibilidade de direitos sociais – de modo a preservar, na medida do possível, as perspectivas dos indivíduos afetados por essa alteração. Por fim, há necessidade de aplicação do critério da proporcionalidade e seus três subcritérios: a adequação (ou idoneidade e aptidão), que compreende na análise se a providência efetivamente consiste no meio para alcançar o fim pretendido; a necessidade (imprescindibilidade da medida), que verifica se há observância à dignidade da pessoa humana, à proibição de arbitrariedade, e à razoabilidade na ingerência estatal a ser realizada, e corresponde à intensidade da medida, visto que a opção deve ser pela de menor gravidade existente; e a proporcionalidade em sentido estrito, a qual acarreta o exercício de avaliação de valor, isto é, objetiva o estabelecimento da prioridade do bem a ser considerado, o quanto a garantia será restringida e o quão pertinentes são os motivos que fundamenta a limitação imposta ao direito social. Assim, a partir da ponderação dos princípios e critérios apresentados, será realizada a averiguação da constitucionalidade da medida sob a ótica da proibição do retrocesso social.

O Supremo Tribunal Federal tem exercido papel importante na preservação da proteção do trabalho da mulher, compatibilizando esse instituto com a proibição de retrocesso social, enquanto princípio alçado à hierarquia constitucional. Nesse sentido, importa salientar a relevância das decisões emanadas pela Corte a respeito da proteção do trabalho da mulher, o que é ressaltado pelos julgamentos demonstrativos do interesse social existente no tema e na forma de realização do controle decorrente dos sustentáculos dos princípios e das normas protetivas do trabalho feminino, como a igualdade e a proteção à maternidade[10]. Entre as principais decisões do STF no que se refere à busca pela igualdade de gênero no mundo do trabalho, estão as seguintes: Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 5938/DF177 (proibição de trabalho de gestante e de lactante em local insalubre), Recurso Extraordinário n° 1058333/PR (remarcação de teste de aptidão física para gestantes), Recurso Extraordinário n° 778889/PE (equiparação do prazo da licença-adotante ao da licença-gestante), Recurso Extraordinário n° 639138/RS (vedação da utilização do tempo menor de contribuição das mulheres para diferenciar complementação de aposentadoria), Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1946/DF (inaplicabilidade do teto do INSS - limitação do art. 14 da Emenda Constitucional n. 20/1998 - ao salário da licença-gestante) e Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 5617/DF (participação política das mulheres e legitimidade das cotas de gênero).

A preservação da proteção do trabalho da mulher necessita, portanto, do controle advindo do princípio da proibição do retrocesso social, por meio de regulação legislativa exercida a partir de ponderação que utilize determinados parâmetros e critérios na aplicação desse instituto. Nesse aspecto, os limites que a proibição do retrocesso social impõe às alterações legislativas tendentes a obstaculizar a proteção do trabalho da mulher são extremamente necessários, posto que visam à valorização dos interesses da sociedade e à persecução da igualdade de gênero, de modo que o princípio da vedação ao retrocesso social pode ser entendido como regulador e limitador de normas incompatíveis à proteção do trabalho da mulher. Por fim, importa destacar que a discriminação contra a mulher não corresponde a algo natural e sim a um aspecto surgido da forma como a sociedade foi estruturada, o que justifica a necessidade de adoção de medidas de ação positiva propostas pelo Estado para que às mulheres seja possível o exercício dos seus direitos de forma equivalente aos homens[11].

Diante das considerações apresentadas, tendo em vista a necessidade de equilíbrio nas relações jurídicas e o dever de concretização dos direitos fundamentais previstos no texto constitucional, é preciso visar, de forma permanente, à busca pelo desenvolvimento social, especialmente no que se refere à luta pela redução no caminho da eliminação da desigualdade de gênero que ainda persiste na sociedade brasileira. Afinal, essa evolução passa diretamente pela implementação de mecanismos que propiciem às mulheres trabalhadoras condições materialmente equivalentes aos homens trabalhadores no que tange às oportunidades, de modo a efetivar direitos fundamentais e sociais no campo fático.

Larissa Moreira da Rosa é advogada na área de Direito Público, tratando de questões de interesse de servidores públicos e de suas entidades representativas

Referências:

DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a mulher e seus direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.

2 DEL PRIORE, Mary. Histórias e Conversas de Mulher. 2ª ed. São Paulo: Planeta, 2014.

3 GARCIA, Maria da Glória F. P. D. Estudos sobre o princípio da igualdade. Coimbra: Almedina, 2005.

4 ARAÚJO, Francisco Rossal de; COIMBRA, Rodrigo. Direito do Trabalho – I. São Paulo: LTr, 2014.

5 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

6 SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo Latino-americano. Rev. TST, Brasília, v. 75, n. 3, jul.-set. 2009.

7 ERBLI, Felipe. O princípio da proibição do retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

8 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004.

9 NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O Princípio de Proibição do Retrocesso Social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

10 Vide o material “Proteção da mulher Jurisprudência do STF e Bibliografia Temática”, disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoTematica/anexo/protecao_da_mulher.pdf>.

11 LAGE, Fernanda de Carvalho; ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira; NOWAK, Bruna (org). Constitucionalismo feminista: expressão das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.