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Artigos

Da esperança em tempos de pandemia

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Por: Elisa Torelly

Em meados de 2016, setores progressistas da política, vinculados ou não a partidos, organizaram-se para denunciar ao mundo o golpe que culminou com a deposição da presidenta Dilma Rousseff, travestido de impeachment, alegadamente decorrente de crime de responsabilidade. Provocadas, as instituições ratificaram o afastamento da mandatária. Para além da mencionada roupagem jurídica, a narrativa política que ganhou corpo e pareceu convencer a opinião pública, após incansável campanha da imprensa dominante, era de que a medida significava um êxito no combate à corrupção. Para partidos e movimentos de esquerda, mesmo aqueles críticos aos governos petistas, o procedimento constituiu um ataque não somente à estabilidade institucional, mas a todo e qualquer anseio por uma sociedade mais justa.

Bastaram alguns meses para isso se evidenciar: a manipulação das regras do jogo democrático se deu para contemplar a avidez do poder econômico em fazer avançar, o mais rápido possível, um projeto de destruição de direitos sociais, exemplificados por contrarreformas como a trabalhista e a previdenciária.

A sessão que aprovou o impedimento foi teatralmente reveladora do perfil médio dos parlamentares, nada tímidos em performar o que de mais tóxico a masculinidade heteronormativa pode representar, e o que de mais tacanho as elites podem oferecer. Ainda assim, à época, poucos se arriscavam a prever a eleição, dois anos depois, para presidente da República, de um dos mais cruéis daqueles personagens, que orgulhosamente homenageou, na solenidade, emblemático verdugo da ditadura civil-militar em que a presidenta em questão sofreu graves violações à sua integridade física e psicológica.

Uma vez eleito Jair Bolsonaro, sabia-se que o país estaria direcionado a um projeto de ainda maior austeridade, com dilapidação de direitos, desmonte da máquina pública e benesses ao poder econômico. Para ter Paulo Guedes a apontar o caminho da agenda econômica, a elite nacional perdeu qualquer pudor, patrocinando a ascensão do que de mais retrógrado há na política – bem refletido no alto escalão do governo, marcado, por exemplo, pela conivência com o comércio ilegal de madeira e pelo obscurantismo na pauta dos costumes, ameaçando os direitos das mulheres, da população LGBTQIA+ e as ações afirmativas atinentes à temática racial.

O que nem o mais criativo dos pessimistas poderia prever é que, exatamente sob esse governo, o país teria o infortúnio de atravessar a pandemia do novo coronavírus. Bolsonaro, desde que a Organização Mundial de Saúde anunciou o estado pandêmico, não poupou esforços ao militar contra as recomendações da comunidade científica, adotando discurso negacionista, contrário a medidas de distanciamento social e promovendo o uso de medicamentos sem embasamento científico. Para coroar, atrasou a compra de vacinas, ignorando as tentativas de contato de laboratório produtor do imunizante, havendo, inclusive, a suspeita de que representantes do governo teriam tentado receber propina na compra de vacinas. A má condução da pandemia causou centenas de milhares de contágios e mortes evitáveis.

É certo que a destruição da malha de proteção social pelas políticas neoliberais defendidas pelo atual Governo, mesmo antes da pandemia, já representava, por si só, um menosprezo à dignidade humana, um dos fundamentos da Constituição da República. Ao deixar, contudo, de exercer seu papel de planejar e efetivar políticas públicas necessárias à contenção da pandemia e à preservação de vidas, o Poder Executivo Federal aplica, sem constrangimento, o que Achille Mbembe cunhou chamar de “necropolítica”, constituída pelo uso do poder político para decidir quem deve viver e quem deve morrer.[i]

Um ano e três meses após o início da pandemia, o Brasil chega à marca de 525 mil mortos e quase 19 milhões de infectados.[ii] Quatro em cada cinco mortes poderiam ter sido evitadas caso o país houvesse seguido as políticas adotadas em outros locais do mundo, conforme apontamentos dos estudiosos Pedro Hallal e Jurema Werneck, na Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, em andamento no Senado, com o fim de investigar as omissões e irregularidades do Governo Federal no trato da pandemia no Brasil.[iii]

Há, ainda, o aspecto econômico e social: ao se colocar como um obstáculo ao controle da disseminação do novo coronavírus, o Poder Executivo Federal postergou a retomada econômica. Colocando-se, por exemplo, contra o isolamento social, o Governo arrasta a duração de uma crise ilustrada pelo desemprego, pelo aumento da informalidade, pela evasão escolar e pela exaustão feminina, tornando escandalosas, por exemplo, a taxa de ocupação das mulheres do mercado de trabalho, a qual sofreu um retrocesso de trinta anos[iv]. Como contrapartida ao sofrimento material causado pela pandemia, oferece à população vulnerável um auxílio emergencial de R$ 150 a R$ 375.

São diversas as searas em que integrantes do chamado “campo democrático” tentam impelir o Poder Executivo a garantir o dever constitucional de promoção da saúde, além de pavimentar o caminho para a responsabilização civil e criminal dos agentes responsáveis pelas mortes. A mencionada Comissão Parlamentar de Inquérito é uma delas.

Como já discorreu Conrado Hubner Mendes, “no exercício de atribuição de responsabilidades jurídicas, […], a parte fácil é que, entre as culpas individuais, há uma culpa cintilante, que não se encerra com Bolsonaro, mas começa com ele e fica ali um bom tempo”, sendo primordial a responsabilidade do presidente. Para além de ter sido omisso, usou de seu poder para “semear dúvida, espalhar desinformação e incitar violação da lei”.[v]

No que diz respeito ao dever do Poder Executivo para trabalhar saídas para a crise, o texto constitucional é cristalino. Ao deixar de o cumprir, o Governo Federal viola, pelo menos, a dignidade humana, o direito à vida e à saúde e os princípios da Administração pública. Nesse contexto, provocando o Poder Judiciário a fazer valer o texto constitucional, PSOL e PC do B ingressaram, perante o Supremo Tribunal Federal, com Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, tombada sob n. 65, para denunciar o descaso com que o Governo Federal vem lidando com a pandemia no Brasil. O pleito é para que o STF determine à União a adoção de medidas efetivas para resguardar os direitos fundamentais em questão, por meio de ações concretas.

O Relator, Ministro Marco Aurélio Mello, na iminência de se aposentar, exarou seu voto pela procedência do pedido, determinando a instituição de comissão de gestão de crise, voltada à contenção da pandemia e à mitigação do seu impacto econômico, reconhecendo como escancarada a inércia do Governo Federal. Sem meias palavras, o julgador pontua a situação como assustadora, elencando as decisões já proferidas pelo Supremo, respeitado o seu limite de atuação, quanto ao estado pandêmico, sempre lastreadas na premissa de que, em se tratando de direitos fundamentais, não se pode tergiversar. Pondera que a “previsão [constitucional] sinaliza não atitude simplesmente estática, mas ativa”, prevalecendo “o sistema intervencionista quanto à satisfação das necessidades básicas”, como as que são implicadas direitos debatidos na ação.

No voto, reconhece-se que, ao deixar colapsar o sistema de saúde e atrasar a compra de vacinas, o Governo desrespeita direitos e “deixa de proteger o cidadão de forma integral”, violando o mínimo existencial. No entender de Marco Aurélio, deixar de reconhecer as denunciadas omissões causaria “prejuízo à força normativa do texto constitucional e a perda de legitimidade do Judiciário”.

O voto conclui pela insuficiência das políticas públicas até o momento aplicadas, porque não se prestam a preservar o direito à vida e à saúde, reconhecendo faltar “vontade política e liberação massiva de recursos para superar a crise”. A medida constitucional manejada e o entendimento externado pelo relator constituem importante sinalização de uma resposta institucional dura e urgente para os males causados pelas tropelias do Governo no trato da pandemia. Para além de identificar as violações a direitos fundamentais e princípios constitucionais, impele concretamente o Poder Executivo Federal a sair de seu estado de inércia e adotar as providências necessárias para conter um ainda maior alastramento do vírus, evitando-se assim, contaminações e mortes – repisa-se à exaustão – evitáveis. Não parece exagero inferir, ademais, que a interpretação abre caminho para a responsabilização jurídica das autoridades quanto aos danos causados pelas mortes e pelos contágios evitáveis.

Cabe lembrar, no aspecto, já terem sido criadas entidades voltadas a amparar pessoas afetadas pela conduta desastrosa do Governo Federal diante da pandemia. Até o momento, as demandas jurídicas são das mais diversas, desde o auxílio-doenca a que fazem jus as pessoas cujas sequelas da Covid-19 sejam incapacitantes, até consultorias relativas a um ambiente de trabalho seguro, que estabeleça os cuidados necessários à prevenção do contágio. Representantes de tais associações estudam, ainda, elaborar representação criminal do presidente pelo agravamento da crise sanitária, e a propositura de pedidos de indenização para as vítimas e familiares de vítimas da doença. [vi]

As iniciativas em comento esboçam uma cultura jurídica que haverá de ser desenhada com maior nitidez e acuidade no cenário pós-pandêmico, quando o país retomar forças para juntar os destroços causados pelos erros e omissões das autoridades na condução da crise sanitária. Trazem, com isso, um sopro de esperança para as forças políticas que, historicamente, contribuem para as tentativas de concretização do pacto constitucional de 1988. Deseja-se que esses ventos sigam soprando, a ponto de, num futuro não tão distante, retomar-se a luta por mais direitos, reconstruindo-se os combalidos sonhos por um mundo melhor, honrando tantos afetos tolhidos e tantas vidas ceifadas, num grande esforço nacional por memória, verdade e justiça.

Elisa Torelly é advogada na área de Direito Público, tratando de questões de interesse de servidores públicos e de suas entidades representativas

Artigo publicado no site Democracia e Direitos Fundamentais

[i] https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/ Acesso em 2 jul 2021

[ii] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/07/05/covid-19-coronavirus-casos-mortes-05-de-julho.htm. Acesso em 6 jul 2021.

[iii] https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2021/03/mortes-por-covid-19-eram-evitaveis-responsabilidade-bolsonaro/. Acesso em 4 jul 2021.

[iv]https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=37963&Itemid=9. Acesso em 4, jul, 2021.

[v] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/05/no-universo-normativo-de-bolsonaro-nao-existe-o-matar-a-distancia-para-o-direito-.existe.shtml. Acesso em 2 jul 2021.

[vi] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/05/23/As-associa%C3%A7%C3%B5es-de-v%C3%ADtimas-da-covid-que-brigam-por-repara%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 5 jul 2021.