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O teletrabalho e a invasão da margem do outro: apontamentos sobre o direito à desconexão, o dano existencial e a violação à dignidade humana em tempos de pandemia

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Por: Ingrid Birnfeld

1. Contextualização. O trabalho remoto na pandemia.

O legislador da reforma trabalhista de 2017 pretendeu adaptar a Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT às novas formas de contratação, novos mercados e profissões e avanços tecnológicos, passando a regulamentar o teletrabalho, que é a atividade humana subordinada que ocorre fora das dependências físicas do estabelecimento empresarial. O artigo 75-C da CLT estabelece que o regime de trabalho à distância deve ser expresso e previsto no contrato de trabalho ou em aditivo, e que alterações só podem ser feitas mediante prévio e mútuo acordo entre empregado e empregador, o que assegura a bilateralidade fixada pelo artigo 468 da CLT.

Contudo, a Medida Provisória nº 927/20, recentemente editada pelo Governo Federal com o objetivo de assegurar a continuidade das atividades empresariais e a manutenção dos empregos e da renda durante o período de calamidade pública e de emergência de saúde pública decorrentes da pandemia do coronavírus (COVID-19), permitiu que o regime de teletrabalho passe a ser adotado a qualquer momento, a critério do empregador, sem a necessidade de concordância do empregado.

Com isso, da noite para o dia, milhões de trabalhadores foram abruptamente colocados em regime de home office, que é a espécie de teletrabalho que ocorre na própria residência do empregado. A validade e a adequação dessa modalidade de trabalho em tempos de pandemia, quando as atividades são compatíveis com o conteúdo ocupacional do trabalhador, parecem não encontrar maiores divergências, na medida em que a ciência afirma que o isolamento físico e a diminuição da circulação de pessoas são fatores decisivos para a contenção do vírus e a realidade mundial evidencia que os países que adotaram medidas mais restritivas à circulação e à aglomeração de pessoas estão obtendo maior êxito no enfrentamento da crise.

A urgência na tomada de decisões pelos empregadores e a (necessária) radicalidade na adoção de novas rotinas de trabalho e de vida torna ainda mais importante a discussão sobre o chamado direito ao não-trabalho ou direito à desconexão.  Pode parecer paradoxal que, num mundo do trabalho adoecido pelo vício do consumo, pela precarização das relações, pela escravização aos meios de informação e pela ameaça real do desemprego, ganhe relevo tal discussão, mas o direito do trabalho, sabemos, deve efetivar direitos humanos e assegurar o direito ao trabalho digno e decente, o que significa dizer que não somente deve estabelecer normas que não coloquem o homem em condições de trabalho desumanas, mas, também, através do trabalho, deve buscar meios que permitam que ele permanentemente se desenvolva como pessoa – cumprindo, assim, a função social do trabalho (artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal).

 

2. A intenção do legislador reformista. Não limitação de jornada.

Ocorre que o legislador reformista, com a intenção de se adaptar aos novos mercados, otimizar tempo e economizar recursos, partindo da premissa de que o teletrabalho impacta positivamente a economia e a sociedade e sob a falácia de que a modalidade aumentaria o ingresso de trabalhadores no mercado de trabalho formal, teve um “primeiro cuidado” (essa é a exata expressão utilizada no Parecer da Comissão Especial ao Projeto de Lei nº 6.787/16, de relatoria do então Deputado Federal Rogério Marinho) em excluir os empregados em regime de teletrabalho da abrangência do Título da CLT relativo à duração da jornada de trabalho. Foi incluído, assim, no art. 62 da CLT, o inciso III, que estabelece que o regime de teletrabalho não se submete às regras gerais de jornada de trabalho aplicáveis ao trabalho presencial.

Daí que se renova como muito atual a discussão sobre o direito à desconexão e sobre a reparação dos danos imateriais causados pela hiperconectividade, que variam desde os sintomas iniciais do chamado tecnoestresse (dificuldade para dormir, cansaço físico e mental, sentimento de solidão, necessidade de permanecer sempre conectado ao empregador), passam pela privação da vida íntima e da convivência social e familiar e chegam ao ponto de causar grave adoecimento físico, psíquico e emocional, não raramente sendo o estresse decorrente do trabalho uma das conhecidas causas de suicídio no mundo.

Não estamos falando, aqui, de trabalhadores que fazem parte de plataformas digitais que trazem a tendência de reorganização do trabalho e de dispersão dos locais de trabalho sob a chefia de algoritmos. Não estamos falando de trabalhadores da Indústria 4.0 vinculados a um regime de economia de acesso ou a plataformas colaborativas, tais como Uber, Rappi ou Upwork, que buscam essas modalidades de trabalho premidos por crises econômicas e na busca de sobrevivência, precarizados desde a origem da relação e “adaptados” a um mercado de trabalho digital e marginalizante. Esses trabalhadores, não há dúvida, desde sempre sofrem os inúmeros malefícios da economia digitalizada e também estão enfrentando os desequilíbrios trazidos pela pandemia, seja pela retração dos mercados, seja pelo incremento de outros mercados e interação dos seus reflexos.   Estamos falando (e apenas porque a pretensão dos presentes apontamentos, longe de se esquecer desses trabalhadores quase invisíveis, é questionar alguns impactos causados em um contingente imenso de trabalhadores presenciais) de pessoas originalmente adaptadas a condições fornecidas na sede do empregador e que tiveram de levar o trabalho para as suas casas e para dentro das suas famílias, e no meio de inúmeras mudanças sistêmicas trazidas com a paralisação concomitante de atividades e rotinas essenciais que refletem na vida dentro de casa, tais como educação, auxílio parental, transporte e lazer. São milhões de trabalhadores que, segundo o artigo 62, inciso III, da CLT, estão excluídos do regime de duração do trabalho e que buscam se adaptar a novas condições de trabalho, muitas vezes precárias, inadequadas e não ergonômicas, sob o mantra da flexibilidade e autogerenciamento do tempo, muitos sem terem sido minimamente treinados para esse regime e, o que é pior, sob o medo do risco iminente de perderem seus empregos e acossados pelas exigências de produzir de um outro jeito, mais e melhor, num mundo adoecido.

Desde a alteração trazida pela Reforma, percebe-se uma tendência dos tribunais em tentar compatibilizar o regime de teletrabalho, em seus diversos formatos, com a limitação de jornada estabelecida na Constituição Federal de 1988 – 8h diárias e 44 horas semanais (artigo 7º, inciso XIII). Inúmeros julgados não aplicam o preceito constitucional de forma absoluta; examinam as condições reais do trabalhador, perquirindo sobre a sua efetiva liberdade para autogerir sua rotina e jornada em conjunto com suas necessidades pessoais, domésticas e familiares, obrigatoriedade de se manter sempre disponível e conectado ao empregador e clientes, participação habitual e freqüente em reuniões virtuais etc. Outros, entendem que o teletrabalho deve, obrigatoriamente, qualquer que seja o grau de efetiva liberdade e flexibilidade conferidas ao trabalhador, observar o limite de jornada constitucionalmente fixado, como condição primeira para o asseguramento de um trabalho digno e compatível com a natureza humana e necessidades e anseios a ela inerentes.

 

3. Hiperconectividade. Direito ao não-trabalho.

A problemática não é singela. A duração da jornada de trabalho vem consagrada desde o Tratado de Versalhes (1919), foi renovada pela Declaração dos Direitos do Homem (1948), no Brasil o descanso semanal remunerado é garantia desde 1949 (Lei nº 605/49) e a limitação (artigo 7º, inciso XIII, da Constituição Federal) foi erigida como condição da existência do trabalho moldado como direito fundamental (artigo 6º da Constituição Federal), ao lado dos direitos ao lazer e à convivência familiar, cujo dever de promovê-los incumbe à toda a sociedade (e, portanto, também ao empregador), família e Estado.

Muito menos que pretender buscar conclusões definitivas acerca da (in)constitucionalidade do artigo 62, inciso III, da CLT, os presentes apontamentos têm a intenção de auxiliar na compreensão e tratamento da realidade trazida pela pandemia, fazendo isso a partir do olhar dos próprios conceitos, bem como tecer reflexos sobre os danos extrapatrimoniais e existenciais que podem ser causados pela rotina de teletrabalho, tanto pela ausência de controles por parte do empregador, quanto pelo inadequado, demasiado ou invasivo controle por parte do empregador.

A Lei nº 12.551/11 alterou o artigo 6º da CLT e estabeleceu isonomia entre o trabalho presencial, realizado no estabelecimento do empregador, e o trabalho remoto, efetuado na casa do empregado ou à distância, em qualquer lugar. Estabeleceu, também, que os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio, como se o empregado estivesse trabalhando sob os olhares físicos do empregador.

Significa dizer que o empregador, no trabalho remoto, é quem continua detendo o poder diretivo sobre o trabalhador, e para tanto deve concretizar meios telemáticos e práticas que permitam seja cumprida a limitação constitucional da jornada, adequadamente controlada a produtividade e gozados os intervalos e repousos. Empresas preparadas para o regime de teletrabalho possuem sistemas, softwares e aplicativos de controle à distância do empregado, sabem a exata jornada cumprida e a sua geolocalização, inativam acessos remotos a partir de determinado horário e em finais de semana e feriados, encaminham automaticamente para outros funcionários e-mails recebidos em período de férias, mas também as empresas não habituadas ao regime de teletrabalho e não possuidoras de tecnologias de controle à distância podem efetuar controles de jornada, mas de repercussão, para a manutenção da dignidade e da vida privada do trabalhador; não enviar mensagens e e-mails após o término da jornada ordinária, silenciar grupos de aplicativos de celulares, manter incomunicabilidade em dias de repouso e feriados e não transformar em rotina reuniões virtuais que não ocorriam com freqüência quando o trabalho era presencial, são exemplos de práticas que não dependem da existência de sistemas telemáticos avançados, e sim de gestores conscientes da função social do trabalho.

 

4. Superjornadas, atenção permanente, tensão, cansaço, angústia. O dano existencial.

Precisamos descansar. Precisamos poder esquecer, como condição para lembrar. Todos os organismos vivos precisam parar, comer e dormir para seguir vivendo, inclusive os vegetais, que, enquanto dormimos, silenciosamente trabalham para garantir que respiremos ao acordarmos para trabalhar.

Ao mesmo tempo, o ritmo imposto pela pandemia é o da urgência, da imediatidade e da maleabilidade – o ritmo próprio e ambivalente de uma vida frenética e dura, de uma vida que espera e que se repete na angústia diante do desconhecido, e ao se repetir se percebe impermanente – daí a ilusão de ter de estarmos sempre conectados, sempre atentos, sempre prontos, sempre informados, para disfarçarmos a nossa inevitável impermanência e o nosso medo constante de deixarmos de ser necessários.

E essa espera, esse estado de permanente atenção e de trabalho em grandes jornadas, essa mistura do trabalho com a vida doméstica e familiar, essa privação de atividades pessoais em virtude do trabalho constante e cada vez mais ameaçado, tem valor?.

Para além da configuração da jornada extraordinária, o regime de teletrabalho descontrolado pode causar danos imateriais, dentre os quais o denominado dano existencial, que passou a ser previsto com a Lei nº 13.467/17 e que antes era analisado pela Justiça do Trabalho à luz da Constituição Federal, do Código Civil Brasileiro e do Código de Defesa do Consumidor. Reparações por danos imateriais decorrentes de calúnia, difamação, acidente de trabalho, assédio e dano existencial agora estão previstas na legislação trabalhista própria – ainda que a “razão” para o disciplinamento desses direitos, segundo o Parecer ao projeto de lei da reforma, tenha sido obstaculizar o crescente “ativismo judicial” que estaria conferindo muita liberdade aos juízes quando da fixação de critérios e parâmetros das indenizações.

Pois bem, causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação (artigo 223-B da CLT). Deixando-se de lado a análise sobre a intenção ou não do legislador de tentar conferir o direito à indenização trabalhista apenas à vítima direta, e não também aos seus sucessores, pelos efeitos ricochetes causados pelas condutas positiva ou negativa, bem como sobre a compatibilidade das regras de habilitação de sucessores para com essa nova disposição, o fato é que o artigo 223-B inaugurou expressa previsão legal acerca do denominado dano existencial, espécie de modalidade/variação do dano moral que cada vez mais, de fato, vem repercutindo nos tribunais trabalhistas.

Como sabemos, o contrato de trabalho é sinalagmático, gera direitos e obrigações para o empregado e para o empregador, que devem mutuamente se tratar com respeito, preservando a integridade e a intimidade de cada um dos envolvidos, ainda que não exista igualdade material entre os contratantes. O direito do trabalho tem como elemento formador de sua essência a defesa da dignidade do trabalhador, e o direito à propriedade e a empreender deve, obrigatoriamente, observar a função social do trabalho. Por sua vez, o artigo 223-A da CLT repete o artigo 186 do Código Civil Brasileiro ao definir que ato ilícito que enseja prejuízo moral ou existencial é aquele que, por ação ou omissão, causa ofensa por violar interesse juridicamente tutelado, sem conteúdo pecuniário mas com valor: a dignidade da pessoa que trabalha ou que emprega, eis que expressamente prevê o dever de também o empregado indenizar o empregador quando for ele quem cometer o dano.

Por sua vez, a doutrina e a jurisprudência, diante da lacuna legislativa conceitual, vinham denominando de dano existencial aquelas lesões causadas a um projeto de vida, que causam um vazio existencial em virtude do comprometimento da gratificação maior que a pessoa tem quando, executando seu trabalho com liberdade e responsabilidade, consegue em virtude dele conferir maior significação à sua vida. Nessa modalidade de dano imaterial, ocorre a frustração de uma realização pessoal, o comprometimento do próprio trabalho como projeto, utilizando-se, aqui, o conceito de “vida ativa” elucidado por Hannah Arendt em A condição Humana, acerca do trabalho como elemento formador e definidor do sujeito, como um constante processo biológico ativo e criativo, de transformação de forças naturais (força física, engajamento, inteligência) em serviços e produtos concretos: é exatamente porque necessita e porque é frágil, que o trabalhador permite que alienem sua força de trabalho, mas a sua vontade de potência, a sua força de querer ser o que é e o que trabalha, e para além do que produz e entrega, é somente sua.

Daí que o teletrabalho carrega grande potencial causador de dano existencial e, em tempos de pandemia, deve atrair nossa reflexão: trabalhador não dirigido ou inadequadamente dirigido trabalha muito, trabalha pouco ou trabalha mal. Trabalha sem saber se trabalha bem e por não saber não para de trabalhar, e porque não para de trabalhar, perde o trabalho, perde a família, perde o curso da sua própria vida.

Ao tratar do jus variandi do empregador, Américo Pla Rodriguez, in Curso de Derecho Laboral, tomo II, volume I, Editora Idea, Montevideo, 1991, p. 191, cita a imagem de José Martins Catharino, e essa imagem é muito elucidativa e nos auxilia a perceber as nuances conceituais do dano existencial e estabelecer um paralelo dele com o teletrabalho unilateral e a critério do empregador trazido pela Medida Provisória nº 927/20:

Sendo de trato sucessivo, pode afirmar-se que a execução do contrato de trabalho corre como um rio fronteiriço desde o seu nascimento até sua desembocadura, separando as áreas de direitos e obrigações de cada um dos contratantes. Se um deles, o empregador mais poderoso, desvia o curso do contrato dentro da margem do outro e o invade, cabe ao empregado, mais fraco, resistir à alteração invasora. Seguindo essa imagem, digamos que o jus variandi representa as modificações produzidas na navegação dentro do rio, sem modificar o seu curso. Por outro lado, há alterações que modificam o seu curso e, assim, causam modificações das fronteiras recíprocas, e, portanto, acabam por trocar o próprio território.

Assim, podemos dizer, quando ocorre uma alteração ou invasão “dentro da margem do outro”, com modificações nas fronteiras, ela é notadamente ilícita e lesiva, pois o curso do rio, alterado, acaba por modificar as próprias margens e, assim, os territórios. A condição de força maior trazida pela pandemia, ao possibilitar a adoção do regime de teletrabalho sem o aceite do empregado, pode, para além das alterações no curso e força das águas, trazidas e justificadas pela bruta força do vírus, acabar por reduzir o território do “outro”. Esse “outro” é, precisamente, a pessoa sujeito de direitos – o trabalhador.

Sujeito de calma. Negar o direito ao descanso é, também, negar ao trabalhador o exercício dialético acerca da sua própria condição humana exercida durante a pandemia, é negar que se realize como sujeito histórico de um tempo ímpar, frágil e inadiável, pois

o tempo que dá voltas e curvas

o tempo tem revoltas absurdas

ele é e não é ao mesmo tempo

(José Miguel Wisnik)

 

*Ingrid Birnfeld é advogada e bacharel em filosofia

Artigo publicado no site Democracia e Direitos Fundamentais

 

Referências bibliográficas

CAPITÁN, L. P. La controvertida delimitacion del trabajo autônomo y assalariado – el trade y el trabajo en las plataformas digitales. Pamplona: Editorial Aranzadi, 2019.

DELGADO, M. G.; DELGADO, G. N. A reforma  trabalhista no Brasil: comentários à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017.

MAIOR, J.L.S..Do direito à desconexão do trabalho. 2003. Artigo disponível na rede mundial de computadores.

RODRIGUEZ, A. P. Princípios de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002.

_________________. Curso de Derecho Laboral, tomo II, volume I. Montevideo: Editora Idea, 1991.

SEVERO, V. S.; ALMEIDA, A. E. Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho. São Paulo: LTr, 2016.

URIARTE, O. E. Protección, igualdad, dignidad, libertad y no discriminación, Revista Derecho Laboral, tomo LIV, nº 241, 2011.