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MP 927 – Impactos nas atividades do profissional da saúde

Por: Saulo Nascimento

A Medida Provisória n. 927/2020 foi editada pelo Poder Executivo Federal sob o argumento de que havia a necessidade de adoção de medidas para o enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus (covid-19).  

Algumas das novidades implementadas por essa MP impactam diretamente as atividades e rotinas dos trabalhadores da área da saúde.

A primeira delas consta no art. 7º, o qual permite ao empregador que suspenda, de forma unilateral, as férias ou licenças dos profissionais da área de saúde ou daqueles que desempenhem funções essenciais, mediante comunicação formal da decisão ao trabalhador. Essa decisão, segundo a medida, deverá ser comunicada ao profissional por escrito ou por meio eletrônico, preferencialmente com antecedência de quarenta e oito horas. 

Veja-se que é notório que o Brasil e o mundo estão diante de uma situação excepcional, que exige a adoção de medidas igualmente excepcionais. No entanto, qualquer inovação na lei deverá respeitar direitos mínimos pré-estabelecidos. Assim, a regra de convocação do trabalhador que se encontra afastado em razão de férias e licenças deve, por óbvio, observar a razoabilidade e também garantir que essa convocação não traga nenhum prejuízo ao empregado, conforme previsão constante no art. 468 da CLT.

Nesta linha de raciocínio, existem as mais variadas situações em que o trabalhador, ainda que da área da saúde, não poderá ser obrigado a retornar ao trabalho. Apenas para trazer um exemplo, as escolas estão fechadas neste período de isolamento social, obrigando as crianças a permanecerem em casa, o que muda por completo a rotina doméstica das famílias, obrigando muitos pais a ficarem mais tempo em casa para cuidar dos seus filhos.

Fato é que a convocação para trabalhar deve respeitar a razoabilidade e não pode trazer prejuízos aos empregados da área da saúde. Quando se fala em prejuízo, não se está restringindo ao aspecto financeiro, mas também ao prejuízo social e familiar, como no exemplo mencionado. 

O art. 15 da MP 927, por sua vez, inova ao determinar que, durante o estado de calamidade pública que foi decretado, fica suspensa a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares. 

O mesmo dispositivo prevê a realização desses exames no prazo de sessenta dias, contados da data de encerramento do estado de calamidade pública. Como o decreto legislativo declara o estado de calamidade com efeitos até 31 de dezembro de 2020, significa dizer que, se até o final do ano ainda estivermos sob estado de calamidade, os exames poderão ser postergados pelas empresas para fevereiro de 2021. 

Segundo a MP, as exceções a essa regra de suspensão seriam os exames demissionais e os exames cuja prorrogação possa representar risco para a saúde do empregado. 

De início, diga-se que a função desses exames médicos periódicos é a de avaliar o estado de saúde dos trabalhadores e orientá-los quanto aos níveis dos fatores de risco da atividade, sejam eles físicos, químicos, biológicos ou até mesmo ergonômicos. Portanto, esses exames, além de avaliarem o estado de saúde do empregado, servem como um verdadeiro indicativo de como está o ambiente de trabalho dos empregados. 

No caso específico dos trabalhadores da saúde, é notória a importância dos exames periódicos, pois os empregados dessa área estão diariamente expostos a riscos, especialmente ao risco biológico, ou seja, faz parte da sua rotina a assistência a pessoas doentes, o que potencializa, em muito, a possibilidade de serem infectados por algum agente insalubre. 

Ora, como será possível postergar para fevereiro de 2021 a avaliação periódica desses trabalhadores que estão diariamente expostos a doenças das mais diversas espécies? Os riscos das atividades dos trabalhadores da saúde não se modificarão neste período de estado de calamidade, pelo contrário. 

Conforme é de conhecimento público, o novo coronavírus é altamente contagioso, e estudos indicam que a sua fase de contaminação inicia antes mesmo de o portador apresentar os sintomas da doença. Isso significa dizer que o profissional da saúde está ainda mais exposto a agentes nocivos nesta pandemia quando comparado a trabalhadores de outra área. Assim, não é possível conceber uma redução da proteção do empregado em um cenário em que a sua saúde está sob maior risco. A própria Constituição Federal, que deve ser respeitada mesmo no atual período, declara, no seu art. 7º, que é direito do trabalhador a redução dos riscos inerentes ao trabalho. Portanto, é dever de todo empregador a atenuação dos riscos à saúde do seu empregado, de modo que a previsão da MP de suspensão dos exames periódicos é inconstitucional e não deve ser adotada pelas empresas.

Neste mesmo caminho, é inconstitucional a previsão constante no art. 29 da MP ao estabelecer que os casos de contaminação pela covid-19 não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.

No aspecto, chama a atenção o fato de que a medida afasta a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, ou seja, reduz a proteção à saúde do empregado, mas, em seguida, estipula que casos de contaminação no trabalho deverão ser comprovados pelo empregado, imputando a este a prova quanto à infecção durante o labor prestado.

Aqui há uma incongruência, pois os exames médicos servem justamente para atestar a saúde do empregado durante o trabalho como forma de proteção sua e também da própria empresa, porque auxiliam na identificação do momento em que ocorreu a contaminação do profissional.

No caso, com o afastamento da compulsoriedade de realização dos exames, o empregado infectado no trabalho perde uma das suas ferramentas de comprovação do próprio nexo causal entre a doença e o labor.

Por essas razões, a situação exposta no art. 29 não pode ser aceita. O ônus da prova em matéria de meio ambiente do trabalho e cumprimento de normas de saúde, segurança, medicina e higiene do trabalho é do empregador. Não se pode esquecer que os empregados das empresas que exploram o ramo da saúde atuam em atividades em que o risco é inerente às suas funções e rotinas. Portanto, a ocorrência de doença ocupacional originada da própria natureza do trabalho desenvolvido atrai para o empregador o encargo de provar a inexistência de nexo de causalidade.

 Por fim, o art. 26 da Medida Provisória permite aos estabelecimentos de saúde, mediante acordo individual escrito, mesmo para as atividades insalubres e mesmo para a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso, as seguintes possibilidades: 1- prorrogar a jornada de trabalho; II - adotar escalas de horas extras no período de intervalo de descanso entre uma jornada e outra. 

Além disso, o art. 27 possibilita a compensação dessas horas extras no prazo de dezoito meses, ou seja, período de 1 ano e meio, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública. Isso poderá ocorrer por meio de banco de horas ou remuneradas como hora extra. 

É importante notar que os direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal são garantias básicas que têm o objetivo de manter um patamar mínimo civilizatório e de dignidade humana. No rol do art. 7º da Constituição estão enumerados diversos direitos, dentre os quais o limite de duração do trabalho não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultando-se a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. 

Assim, é garantia mínima do empregado o trabalho diário de no máximo 8 horas e semanal de 44, admitindo-se, porém, como exceção, a jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso, bastante praticada pelos trabalhadores da área da saúde, estabelecida em convenções e acordos coletivos de trabalho, com a participação dos sindicatos. 

Esse direito constitucional a uma jornada máxima foi uma importante conquista dos trabalhadores, pois as jornadas excessivas traziam consequências devastadoras, como adoecimento físico e mental, maior exposição aos riscos do ambiente de trabalho e uma alta ocorrência de acidentes. 

A MP 927 descaracteriza por completo a lógica trazida pela Constituição Federal, pois permite ao empregador o elastecimento da jornada de 12h de trabalho, possibilitando, por exemplo, que exija do empregado que trabalhe por 15 ou 16 horas, aproximando essa situação do que era vivenciado pelos trabalhadores no século XVIII. 

A MP ainda afasta por completo a participação dos sindicatos na negociação desse aumento de jornada, o que está em total desacordo com a Constituição.

Destaca-se que a jornada de 12h, por si só, já é mais desgastante do que a jornada normal de 8h, exigindo mais atenção do empregado na execução das suas atividades. Por isso, admitir que os trabalhadores da área da saúde possam realizar horas extraordinárias excedentes à 12ª hora de trabalho é ignorar o natural aumento do desgaste físico e mental desses profissionais e consequentemente a potencialização da ocorrência de erros técnicos de execução da atividade e de adoção das medidas de prevenção. Todos esses fatos, dentro de uma lógica de pressão psicológica em meio à pandemia, colaborarão para o aumento da exposição dos trabalhadores à contaminação, o que vai de encontro aos princípios constitucionais que determinam a redução dos riscos inerentes ao trabalho. 

Não bastasse isso, conforme explanado, o aumento da jornada normal de trabalho nos casos abordados sem a participação do sindicato, mesmo em período de estado de calamidade pública, é inconstitucional e afronta o patamar mínimo de direitos e a dignidade do trabalhador, garantidos constitucionalmente.

Por todos os motivos elencados, a MP n. 927/20 é notoriamente nociva, devendo ser rechaçada por toda a sociedade e pelo Poder Judiciário, sob pena de os trabalhadores terem que suportar consequências negativas e irreversíveis à sua saúde física e mental, bem como se submeter a alterações ilegais nos seus contratos de emprego.

Saulo Nascimento é advogado na área do Direito Trabalhista e Sindical