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Dia da consciência negra: os dados do IBGE e a busca pelo ideal igualitário

Dia da consciência negra: os dados do IBGE e a busca pelo ideal igualitário

Por: Saulo Nascimento

Diversos jornais divulgaram recentemente pesquisa do IBGE com o dado de que a população negra (pretos e pardos) passou a formar a maioria dos estudantes na rede pública do ensino superior, no percentual de 50,3%. Circunstância a ser comemorada, sem dúvidas, mas que deve ser avaliada em conjunto com outras informações omitidas por boa parte da imprensa.

 

O dado divulgado tem origem no estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça e consta em dois informativos publicados pelo IBGE, que podem ser acessados aqui:

 

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf

 

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/4e0d6489049f2329584cd5e61350d192.pdf

 

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que a população negra representa 55,8% da população brasileira. Portanto, ainda que alcançada a maioria no ensino superior (50,3%), esse universo de pessoas permanece subrepresentado dentro das universidades. Isso indica que as políticas de acesso ao ensino superior, que fomentam o ingresso dos negros, têm trazido resultado positivo, mas ainda não atingiram a equalização na proporção de negros e brancos neste ambiente.

 

Porém, este breve texto tem o intuito de chamar a atenção para o fato de que os já mencionados informativos do IBGE trazem uma enxurrada de muitos outros elementos que não podem ser ignorados, que devem ser lidos e interpretados/avaliados em conjunto, e que também mereceriam ampla divulgação.

 

Não há como relacionar todos eles, cada um com carga de importância inegável, mas, pelo receio de que, vista isoladamente, a informação sobre a representatividade no ensino público superior possa equivocadamente levar à conclusão de que se está perto de atingir o objetivo igualitário, enumeram-se alguns dos demais dados para comprovar que há ainda um longo caminho a ser percorrido para se atingir a igualdade racial idealizada:

 

  • Apesar de serem 54,9% da força de trabalho, pretos ou pardos formavam 64,2% dos desocupados e 66,1% dos subutilizados, em 2018;

 

  • Pretos ou pardos receberam apenas 57,5% dos rendimentos do trabalho das pessoas brancas;

 

  • A maior desigualdade ocorreu entre homens brancos e mulheres pretas ou pardas (44,4%);

 

  • O recorte por nível de instrução e hora trabalhada reforça a percepção da desigualdade por cor ou raça no mercado de trabalho, já que o rendimento das pessoas brancas foi 70% acima das pretas ou pardas, em média;

 

  • E pretos ou pardos receberam menos independentemente do nível de ensino, sendo que, no nível mais elevado tal diferencial alcançou 45%;

 

  • Somente 11,9% de pessoas em cargos gerenciais de mais alta renda eram pretas ou pardas, sendo 85,9% entre as brancas;

 

  • Em 2018, entre os 10% da população com os maiores rendimentos, apenas 27,7% eram pretos ou pardos. Por outro lado, os pretos ou pardos representavam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população com os menores rendimentos;

 

  • O rendimento médio domiciliar per capita da população branca (R$1.846) era quase duas vezes maior do que o da população preta ou parda (R$934);

 

  • Entre as pessoas de 18-24 anos que estudavam, os brancos (78,8%) estavam em maior proporção na etapa adequada de ensino que os pretos ou pardos (55,6%);

 

  • Em 2017, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca;

 

  • Sub-representação da população preta ou parda na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas Estaduais e nas Câmaras de Vereadores; Sub-representação não pode ser explicada unicamente por ausência de candidaturas. Pretos ou pardos eram 41,8% dos candidatos a deputado federal, mas apenas 24,4% dos eleitos.

 

Infelizmente não constam nos informativos do IBGE os números sobre o percentual de negros em cada curso superior. Esses dados também seriam importantes para uma análise global ainda mais precisa acerca de quais os cursos que os negros estão acessando e se o ingresso é efetivamente universal ou em apenas em algumas carreiras.

 

Arrisco dizer que, se tivéssemos tais dados em relação ao número de negros cursando arquitetura, medicina, psicologia e direito, apenas para exemplificar, veríamos que a informação sobre a maioria de estudantes negros no ensino superior público não significa necessariamente o acesso democrático a todos os cursos.

Enfim, para quem busca informações mais aprofundadas sobre o tema e tomam o devido cuidado para não serem capturados por interpretações apressadas a partir de uma referência isolada, os subsídios encontram-se nos próprios informativos do IBGE, os quais devem ser analisados com toda cautela e sob uma visão global e sistemática. Tal perspectiva é imprescindível para que se possam traçar, fundamentadamente, estratégias e políticas públicas de caráter antirracista.

 

Saulo Nascimento é advogado na área do Direito Trabalhista e Sindical.