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A inconstitucionalidade das alterações propostas na “MP da Liberdade Econômica”: violação ao devido processo legislativo

Por: Tiago Gornicki Schneider

Em abril de 2019, foi editada a Medida Provisória nº 881, a qual “Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, e dá outras providências”. A medida ficou conhecida, na imprensa, como “MP da Liberdade Econômica” e, desde então, tramitou no Congresso Nacional.

Recentemente, a Comissão Mista do Congresso Nacional (formada, portanto, por deputados e senadores) aprovou parecer que altera substancialmente a referida medida provisória. Entre as alterações no texto original da medida encaminhada pelo Poder Executivo, está a inserção de modificações na Consolidação das Leis do Trabalho, o Decreto-Lei nº 5.452/1943. A partir do projeto de lei de conversão aprovado na Comissão Mista, ao menos 36 (trinta e seis) dispositivos da CLT são alterados, alcançando a regulamentação sobre descanso remunerado e trabalho aos domingos e a obrigatoriedade de instituição de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), entre diversos outros aspectos.

Independentemente da análise pormenorizada da constitucionalidade material dos dispositivos em questão, salta aos olhos sua inconstitucionalidade formal pelo vilipêndio do devido processo legislativo, conforme julgado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5127.

É importante apreender que, no texto original da medida provisória, nenhum artigo da CLT era alterado, o que veio a ser incluído apenas na tramitação da questão na Comissão Mista. Na prática, é aquilo comumente chamado de “jabuti”: inserção, em medidas provisórias, de questões que não guardam pertinência temática com a medida provisória original. Isso é feito para, burlando o devido processo legislativo, já que a tramitação de medidas provisórias é mais célere e com menos etapas, inserir proposições que muitas vezes sequer conseguiriam tramitar normalmente.

O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de apreciar a questão:

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA LEI GAÚCHA N. 10.385/1995. PARALISAÇÃO DOS SERVIDORES DO PODER JUDICIÁRIO ESTADUAL. DIAS PARADOS CONTADOS COMO DE EFETIVO EXERCÍCIO.EMENDA PARLAMENTAR. ALTERAÇÕES DO DISPOSITIVO APONTADO COMO PARÂMETRO DE CONTROLE DECONSTITUCIONALIDADE DA NORMA IMPUGNADA.PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO NÃO CONFIGURADA.DESRESPEITO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E À AUTONOMIA ADMINISTRATIVA EFINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO. (...)

2. Admissão de emendas parlamentares aos projetos de lei de iniciativa privativa do Poder Executivo e Judiciário, desde que guardem pertinência temática com o projeto e não importem em aumento de despesas.

3. A Emenda Parlamentar n. 4/1995 afastou-se da temática do Projeto de Lei n. 54/1995, interferiu na autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário: desrespeito ao art. 2º da Constituição da República.

4. Ação direta deinconstitucionalidade julgada procedente.”

(ADI 1333/RS, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento em29.10.2014, DJe 18.11.2014) 

“DIREITO CONSTITUCIONAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. EMENDA PARLAMENTAR EM PROJETO DE CONVERSÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA EM LEI. CONTEÚDO TEMÁTICO DISTINTO DAQUELE ORIGINÁRIO DA MEDIDA PROVISÓRIA. PRÁTICA EM DESACORDO COM O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E COM O DEVIDO PROCESSO LEGAL (DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO).

1. Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.

2. Em atenção ao princípio da segurança jurídica (art. 1º e 5º, XXXVI, CRFB), mantém-se hígidas todas as leis de conversão fruto dessa prática promulgadas até a data do presente julgamento, inclusive aquela impugnada nesta ação.

3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente por maioria de votos.”

(ADI 5127, Relator(a):  Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-094 DIVULG 10-05-2016 PUBLIC 11-05-2016) 

O voto-condutor da Ministra Rosa Weber bem delimita a questão: 

9. A deflagração do procedimento para conversão de medida provisória em lei é consequência do exercício, pelo Presidente da República, da sua competência privativa para editar medidas provisórias, submetendo-as de imediato ao Congresso Nacional.

Como a jurisprudência desta Suprema Corte entende incompatível com o delineamento constitucional a incorporação de emenda parlamentar a projeto de lei apresentado pelo Chefe do Poder Executivo nos limites do seu poder de iniciativa quando ausente o vínculo de afinidade material, a mesma ratio conduz a que tampouco se admita emenda absolutamente inovatória em rito legislativo sujeito a garantias mais brandas do que as que norteiam o processo legislativo ordinário.

10. Em termos comparativos, no processo de conversão de medida provisória em lei, de caráter excepcional, o Poder Legislativo não atua em toda a sua amplitude e nem detém a mesma liberdade para tanto. Nas palavras de Clèmerson Merlin Clève, ‘(...) o procedimento de conversão não se confunde com o ordinário de produção legislativa. A lei de conversão não pode, por isso, ser considerada um modo normal de manifestação do Congresso Nacional.’ (Medidas provisórias. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Max Limonad, 1999).

A incorporação de emenda parlamentar sobre matéria estranha às versadas na medida provisória implica permitir se instaure o rito legislativo anômalo previsto excepcionalmente na Carta Política para a conversão de medida provisória em lei quanto a matéria não submetida ao Congresso Nacional na forma do art. 62, caput, da Constituição da República. Mais do que o poder de emenda, significa conferir ao parlamentar a titularidade de iniciativa para, esquivando-se do procedimento para aprovação das leis ordinárias, submeter propostas legislativas avulsas ao rito dos projetos de lei de conversão, aproveitando-se da tramitação de medida provisória sobre outra matéria. (...)

14. O que tem sido chamado de contrabando legislativo, caracterizado pela introdução de matéria estranha a medida provisória submetida à conversão, não denota, a meu juízo, mera inobservância de formalidade, e sim procedimento marcadamente antidemocrático, na medida em que, intencionalmente ou não, subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade. Com efeito,

‘Nas democracias constitucionais contemporâneas apenas as normas postas pelos representantes do povo construídas por meio de um processo específico podem obrigar ou proibir uma ação ou omissão, como consta, p. ex. no art. 5º, II, da Constituição Federal. Isso significa que a soberania popular deve ser exercida nos limites determinados pela ordem jurídica, cujas normas apenas são válidas se criadas nos marcos constitucionais do devido processo legislativo.

Nessa linha, doutrina e jurisprudência reconhecem que o devido processo legislativo é uma garantia, do parlamentar e do cidadão , inscrita na cláusula do substantive due process of law (art. 5º, LIV, da CF/88), envolvendo a correta e regular elaboração das leis.

Para além da tramitação formal, a dimensão substantiva da due process of law impõe que o processo legal seja justo e adequado, o que deve ser preservado já na fase de produção das leis.’ (MARRAFON, Marco Aurélio e ROBL FILHO, Ilton Norberto. ‘Controle de constitucionalidade no projeto de lei de conversão de medida provisória em face dos ‘contrabandos legislativos’: salvaguarda do Estado Democrático de Direito’ In FELLET, André e NOVELINO, Marcelo (Orgs). Constitucionalismo e Democracia. Salvador: JusPodivm: 2013, p. 236-7, destaquei).

Não se trata em absoluto de apenas de aproveitar o rito mais célere para fazer avançar o processo legislativo, supostamente sem prejuízo. A hipótese evidencia violação do direito fundamental ao devido processo legislativo – o direito que têm todos os cidadãos de não sofrer interferência, na sua esfera privada de interesses, senão mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com o procedimento constitucionalmente determinado. Assim,

‘O direito ao devido processo legislativo é um exemplo de direito fundamental de titularidade difusa, não um direito subjetivo de um ou outro parlamentar, ao menos no que se refere à regularidade do processo de produção das leis. Esse direito funciona simultaneamente como um direito de defesa e como um direito à organização e ao procedimento. Enquanto direito de defesa, o direito ao devido processo legislativo articula, em princípio, pretensões de abstenção e de anulação. As pretensões de abstenção dirigem-se ao órgãos legislativos e exigem que os mesmos se abstenham de exercer sua função em desconformidade com os parâmetros constitucionais e regimentais que a regulam. As pretensões de anulação, por sua vez, são comumente dirigidas ao Poder Judiciário, que delas conhece em sede de controle de constitucionalidade.’ (BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Processo Legislativo e Democracia. Belo Horizonte: Del Rey, 2010)

15. Em termos práticos, os prazos exíguos prejudicam o exame aprofundado e cuidadoso do direito novo proposto e têm como consequência a eventual aprovação de ‘regras que não seriam jamais aprovadas pelo Parlamento em deliberação normal’ (CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas provisórias. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Max Limonad, 1999). Do fato de a Constituição admitir tal interferência no regular processo legislativo, de modo excepcional, a fim de atender demanda reputada urgente e relevante pelo mandatário do Poder Executivo, de modo algum se infere que qualquer intenção de direito novo manifestada por parlamentar tenha legitimidade para tramitar sob o mesmo regime extremamente simplificado.”

 

Como esclarecido, a Medida Provisória original não possuía qualquer dispositivo alterando a Consolidação das Leis do Trabalho, a evidenciar a impertinência temática da inserção, durante o processo de conversão em lei da Medida Provisória nº 881/2019, das referidas alterações pela Comissão Mista do Congresso Nacional e, portanto, a inconstitucionalidade da tramitação, por vilipêndio do princípio democrático e do devido processo legislativo.

Tiago Gornicki Schneider é advogado na área de Direito Público, tratando de questões de interesse de servidores públicos e de suas entidades representativas.