Ir para o conteúdo principal

Artigos

Os efeitos de renúncia da prescrição nas revisões de aposentadorias dos servidores públicos

Por: Glênio Luís Ohlweiler Ferreira e Marcelo Lipert

Não é novidade, no atual quadro jurisprudencial, que o histórico debate em torno da prescrição das pretensões revisionais de aposentadoria ainda não chegou a um termo razoável, não havendo a pacificação necessária acerca da espécie aplicável, se a do fundo de direito, ultrapassados cinco anos do ato inativatório (art. 1º do Decreto nº 20.910/32), ou se apenas das parcelas vencidas no quinquênio anterior ao ingresso da ação (art. 3º do Decreto nº 20.910/32 e Súmula nº 85 do STJ).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, como é consabido, os entendimentos ainda se dividem, mas é francamente majoritária a corrente que acolhe, nesses casos, a prescrição do fundo de direito. Todavia, em se tratando de pretensão revisional de aposentadorias, sempre há que levar em conta a possibilidade de se invocar eventual reconhecimento administrativo, não só como causa interruptiva da prescrição, mas também como circunstância potencialmente ensejadora de sua renúncia, principalmente nos casos em que o lapso quinquenal já tenha se consumado: uma coisa é considerar pretensão revisional que tenha sido deduzida quando já transcorridos mais de cinco anos do ato inativatório, notoriamente prescrita sob a concepção da corrente majoritária do STJ; outra, bem diversa, é considerar que tal pretensão, sob idêntica circunstância, esteja revestida de eventual reconhecimento de direito que tenha sido formalizado na via administrativa posteriormente ao implemento desse prazo. Ou seja, se houve o reconhecimento administrativo do direito em sede revisional, quando já ultrapassado o lustro prescricional, eis aí a configuração de autêntica renúncia da prescrição. Renúncia que, em verdade, tem revelado certa praxe administrativa, principalmente nos casos de revisão do tempo de serviço laborado pelos servidores públicos federais.

A partir de 2007, a Administração Pública Federal, admitindo a consolidação do direito dos servidores ex-celetistas ao cômputo do tempo de serviço laborado sob condições especiais (insalubridade, periculosidade e penosidade), anteriormente à edição do Regime Jurídico Único (Lei nº 8.112/90) – resultado de maciças vitórias judiciais travadas em ações ajuizadas a partir da segunda metade da década de 90, e, por fim, da pacificação da matéria também no âmbito do Tribunal de Contas da União – TCU, no paradigmático Acórdão TCU-Plenário nº 2008/2006, (DOU de 06-11-2006) –, passou a editar atos administrativos de reconhecimento do direito que implicaram não só a renúncia da prescrição em tese consumada, mas a sua inegável interrupção para fins de dedução de pretensões revisionais de aposentadoria. 

Tanto é verdade que, ao editar as Orientações Normativas SRH/MPOG nºs 03, de 18-05-2007, e 07, de 20-11-2007, a Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG passou a estabelecer diretrizes para o reconhecimento administrativo do direito à contagem especial desse tempo de serviço para fins de aposentadoria, sem que tenha tecido qualquer restrição aos que já se encontravam aposentados há mais de cinco anos. Por meio do primeiro ato normativo, possibilitou-se a conversão do tempo especial a qualquer “servidor público que exerceu, como celetista, no serviço público, atividades insalubres, penosas ou perigosas”. Já o segundo ato normativo regulamentou os procedimentos que balizaram o processamento dos pedidos, facultando ao servidor vindicar individualmente esse direito, o que veio a dar origem a uma resposta administrativa que culminou com o reconhecimento do pedido e a própria renúncia da prescrição, cujo prazo restou reaberto. Rigorosamente, não fosse a edição de tais atos normativos, não poderia o servidor já inativado há mais de cinco anos deduzir qualquer pretensão nesse sentido, na medida em que eventual indeferimento seria tratado sob a ótica do art. 1º do Decreto nº 20.910/1932. Mas, por força da prerrogativa de postular essa revisão na via administrativa, a resposta ofertada pela Administração, tanto negando quanto deferindo o postulado, teve o condão de reabrir a via da discussão judicial. O deferimento do direito, por evidente, implicou renúncia da prescrição relativamente aos que já tinham se aposentado há mais de cinco anos, de modo a materializar a previsão contida no art. 191 do Código Civil: “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.” Nesse caso, configurou-se renúncia tácita, na medida em que não houve previsão expressa quanto aos efeitos da revisão se estender apenas a servidores cujas aposentadorias tivessem sido concedidas dentro do prazo de cinco anos. O que houve, em realidade, foi a pretensão de que as diferenças alcançadas na via administrativa retroagissem tão-somente a 06-11-2006, data de publicação do Acórdão TCU-Plenário nº 2008/2006. Nesse caso, poder-se-ia perquirir sob qual extensão se operam os efeitos da renúncia, ou seja, ao reconhecer o direito à revisão da aposentadoria dos servidores, seja para aumentar-lhes a proporção dos proventos, seja para integralizá-los, a Administração renunciou a prescrição tão-somente em relação às diferenças que retroagem a essa data de 06-11-2006 ou essa renúncia se estendeu à concessão originária dos proventos ? No entendimento da Colenda 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, os efeitos da renúncia, nesse caso, “... retroagem à data do surgimento do direito (data da inativação), sendo irrelevante que o ato administrativo tenha limitado os efeitos financeiros de forma diversa.” E esse entendimento “...não contraria o disposto no art. 191 do Código Civil, pois o reconhecimento de que a autora fazia jus ao cômputo de tempo de serviço especial já ao tempo da aposentação é fato incompatível com a prescrição, inclusive no que se refere aos valores pretéritos (TRF4, APELREEX 5064589-84.2012.4.04.7100/RS, Relatora Desembargadora Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha, 4ª Turma, j. 22-09-2015). 

Nesse sentido, são diversos os precedentes jurisprudenciais produzidos no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tem se inclinado no sentido de reconhecer o direito às diferenças estipendiárias desde o jubilamento, em havendo expressa revisão do ato administrativo concessor da aposentadoria, com edição de nova portaria. Merece especial destaque o acórdão proferido pela Colenda 2ª Seção do Tribunal no julgamento dos Embargos Infringentes nº 5064589-84.2012.4.04.7100, sob a relatoria da Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler: 

EMBARGOS INFRINGENTES. DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTAÇÃO. REVISÃO ADMINISTRATIVA. INTEGRALIZAÇÃO. RETROATIVIDADE. DIFERENÇAS DE REMUNERAÇÃO. PRESCRIÇÃO. RENÚNCIA INTEGRAL.

1. Ação ordinária movida por servidor público federal visando ao pagamento de diferenças de remuneração desde quando aposentado originariamente, decorrentes da integralização administrativa de sua aposentação, levada a efeito por portaria, com eficácia retroativa.

2. Operou-se a renúncia à prescrição das parcelas pretendidas de forma retroativa à data da aposentação do servidor, com suporte na portaria do INSS que revisou administrativamente a pedido do interessado o benefício percebido com tal eficácia retroativa, para o efeito de torná-lo integral ante a consideração de tempo laborado na qualidade de especial quando da regência pela CLT.

3. Embargos infringentes desprovidos.

(TRF4, 2ª Seção, EI 5064589-84.2012.4.04.7100, Rel. Des. Fed. MARGA INGE BARTH TESSLER, juntado aos autos em 31-03-2016) 

 

Esse mesmo entendimento tem sido consagrado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, com expressa referência à disposição do art. 191 do Código Civil, definindo-se os efeitos da renúncia à data do surgimento do direito à inativação: 

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. REVISÃO DE APOSENTADORIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. RECONHECIMENTO ADMINISTRATIVO DO DIREITO APÓS O TRANSCURSO DO LUSTRO PRESCRICIONAL. RENÚNCIA À PRESCRIÇÃO. ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM EM SINTONIA COM A JURISPRUDÊNCIA FIRMADA NESTE E. STJ. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

(...) 

2. Tendo o Tribunal de origem decidido que, face ao reconhecimento do direito da autora pela Administração Pública, com a revisão administrativa do ato de concessão de aposentadoria, após o decurso do lapso quinquenal, operou-se a renúncia à prescrição, a ensejar o reinício da contagem do prazo prescricional em sua integralidade (art. 191 do Código Civil). E os efeitos da renúncia retroagem à data do surgimento do direito (no caso, a data de inativação)’ (fl. 320-e), o fez em sintonia com a jurisprudência firmada no âmbito do STJ. Incidência da Súmula 83/STJ. 

3. Agravo regimental não provido.

(AgRg no RESP 1.552.728-RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 10-03-2016, DJe 16-03-2016 – grifos no original)

Nesse julgado, o entendimento manifestado pelo douto Ministro Mauro Campbell Marques constituiu-se como verdadeiro divisor de águas na questão da renúncia da prescrição operada a partir dos atos administrativos de reconhecimento de direito editados com base nas Orientações Normativas SRH/MPOG nºs 03, de 18-05-2007, e 07, de 20-11-2007. Até então, o entendimento que predominava no STJ era o de que não se configurara a renúncia da prescrição, sob a falsa premissa de que “... não foram expressamente incluídos por aqueles atos administrativos os servidores que, à época, já se encontravam aposentados e tiveram suas pretensões submetidas aos efeitos da prescrição” (AgRg no REsp 1.218.863/RS, 1ª Turma, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, julgado em 23-10-2014, DJe 03-11-2014). Sob tal entendimento, aplicava-se o prazo prescricional quinquenal previsto no art. 1º do Decreto nº 20.910/1932 – a prescrição do fundo de direito –, sem que se ponderasse acerca dos efeitos da revisão dos proventos que, paralelamente, se concretizava na via administrativa: em situação paradoxal, o servidor tinha decretada a prescrição de sua pretensão revisional na via judicial e, em paralelo, obtinha essa mesma revisão na via administrativa. E tudo porque, em dado momento – e aqui nossa contribuição, em linha de crítica à postura até então adotada por aquela E. Corte –, não se admitira a ponderação do que ocorria no plano fático. Olvidara-se de que, independentemente da data da concessão da aposentadoria, a Administração processara todos os pedidos administrativos deduzidos com base em tais atos normativos, não só publicando nova portaria de revisão da aposentadoria, com expressa menção a efeitos retroativos ao ato de concessão originário, como também formalizando expedientes internos para a apuração e pagamento de valores atrasados. 

Em verdade, para que se pudesse aquilatar os reais efeitos de renúncia da prescrição operados a partir dos atos de reconhecimento do direito formalizados pela Administração, não poderia o E. STJ olvidar, jamais, do que ocorria no plano fático, sendo válida e sempre atual a lição do ex-Ministro Ruy Rosado, segundo o qual, “se fatos novos surgirem, devem ser levados em consideração, em qualquer grau de jurisdição, pois do seu desprezo poderá sobrevir decisão desajustada e incompatível com a nova realidade.” Em que pese as inúmeras tentativas envidadas no sentido de fazer com que se afastasse a aplicação do prazo previsto no art. 1º do Decreto nº 20.910/1932, inúmeros servidores tiveram suas pretensões aniquiladas, mesmo diante da juntada, em seus respectivos processos, da portaria revisional de suas aposentadorias – a prova material do reconhecimento administrativo –, em decisões notoriamente desajustadas e apartadas da realidade. 

O que importa para a configuração da renúncia da prescrição, in casu, é o ato administrativo de reconhecimento do direito e não propriamente o ato normativo que possibilitou a formalização de pedido administrativo. Nesse particular, esclareceu o douto Ministro Mauro Campbel Marques, em lapidar decisão, que:

(...) A renúncia à prescrição não teria surgimento com as Orientações Normativas, expedidas pelo MPOG em 2007, mas, sim, com o “reconhecimento do direito da autora pela Administração Pública, com a revisão administrativa do ato de concessão de aposentadoria, após o decurso do lapso quinquenal, operou-se a renúncia à prescrição, a ensejar o reinício da contagem do prazo prescricional em sua integralidade (art. 191 do Código Civil). E os efeitos da renúncia retroagem à data do surgimento do direito (no caso, a data de inativação)”, bem como, por isso, teria ocorrido renúncia e não interrupção da prescrição, já que essa “opera quando o prazo ainda está em curso, sendo impossível obstar o fluxo daquele que se esgotou", enquanto "a renúncia tem espaço somente quando o prazo já escoou por inteiro, porquanto só é possível renunciar a um direito que se possui" (fl. 320-e).

Dessa forma, assentou que "a ação judicial foi proposta antes de findo o prazo de 05 (cinco) anos, a contar da renúncia à prescrição, que se confirmou pela publicação dos atos de reconhecimento administrativo (Portaria SEGEP/MS/RS Nº 272, de 06 de agosto de 2012, publ. no DOU - Seção 2 de 07/08/2012; Portaria SEGEP/MS/RS Nº 448, publ. no DOU - Seção 2 de 24/06/2011 e Portaria SEGEP/MS/RS Nº 160, de 19 de abril de 2012, publ. no DOU - Seção 2 de 20/04/2012 - evento 1, PORT7, PORT8 e PORT 9), não há se falar em parcelas fulminadas pelo decurso do tempo." (fl. 320-e).

Nesse contexto, é que se torna possível contornar a incidência da prescrição, pois em face de atos administrativos concretos de reconhecimento de direito – a publicação de portaria revisional de proventos, v.g. –, não é razoável defender-se a aplicação da regra prevista no art. 1º do Decreto nº 20.910/32, não havendo falar, nessas circunstâncias, em prescrição do fundo do direito, ante a inequívoca configuração de renúncia por parte da Administração. 

 

Glênio Luís Ohlweiler Ferreira é advogado na área de Direito Público, tratando de questões de interesse de servidores públicos e de suas entidades representativas, e integrante do Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (CNASP).

Marcelo Lipert é advogado na área de Direito Público, tratando de questões de interesse de servidores públicos e de suas entidades representativas, e integrante do Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (CNASP).