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Querem pegar as cerejas do nosso bolo!

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Por: Ingrid Birnfeld

A Advocacia é um ofício grave. Em nenhum dos outros ofícios o profissional é contratado para exercer a cidadania em nome do seu cliente. Por meio dele, falamos por ele e para ele. A rotina forense, a repetição das demandas e a experiência fazem com que nos acostumemos – ainda bem - com o peso desse encargo, que nunca deixa de ser grave, tônus ainda mais real na vida daqueles que militam na Justiça do Trabalho.

Desempregado, despedido sem verbas rescisórias, humilhado, doente, acidentado e sem salários para pagar contas e sobreviver, o cliente nos procura, via de regra, porque o respeito, a razão e o diálogo faliram. Deposita, assim, nas nossas capacidades, uma imensa expectativa de que resolvamos, falando por ele, o que a vida, infelizmente, corretamente não resolveu.

No Rio Grande do Sul, quando elege um advogado trabalhista para tratar do seu conflito, o trabalhador escolhe um entre cerca de 14 mil profissionais que nessa área atuam, segundo dados da OAB-RS. Ressalto isso para evidenciar a especialidade dessa escolha e a necessidade de sempre lembrarmos disso durante todo o curso do processo, para executarmos nosso trabalho com qualidade e exigirmos, em contrapartida, que esse ofício tão especial seja respeitado pelos demais atores envolvidos no processo.

Tenho que é realmente uma graça ser escolhido, entre milhares, para proteger alguém.

E é exatamente essa natureza alimentar dos direitos buscados, que confere ainda maior densidade ao litígio trabalhista, que vem motivando discussões acerca dos honorários devidos aos advogados e da (im)possibilidade de ingerência dos magistrados no contrato firmado com o cliente.

A impossibilidade de cobrança de honorários contratuais, a necessidade de se modificar o entendimento de que os honorários assistenciais são devidos apenas quando presente credencial sindical, a impossibilidade de cumulação de honorários assistenciais com contratuais são temas que a advocacia vem enfrentando nos últimos anos.

Esses embates, contudo, agora ganham maior relevo com a exigência, por parte de alguns juízes do Trabalho do RS, de exibição do contrato de honorários como condição para o recebimento da remuneração pelo trabalho. Além disso, esses magistrados têm liberado alvarás em nome do próprio reclamante e a eles entregado diretamente o documento, sem a presença do advogado e à revelia do mandato.

Advogados dizem que o juiz do Trabalho é incompetente para tanto, e que a prática é ilegal porque se imiscui em relação privada estranha à lide, porque há poder específico na procuração para receberem em nome do cliente, porque estão sendo subvertidas as regras éticas basilares da advocacia, de cobrança de honorários contratados e compatíveis com o trabalho prestado e conforme a Tabela da OAB, dentre outros consistentes argumentos.

Magistrados alegam que o objetivo da prática seria assegurar o recebimento, pelo autor, dos seus créditos, preservando, assim, a razão mesma da existência da Justiça do Trabalho, e sustentam que seria medida de transparência desejável para todos os envolvidos no processo.

O Espaço Vital tem publicado artigos de autoria de todos os envolvidos, para propiciar um debate franco e amplo da questão. Advogados renomados e juízes formadores de opinião têm se manifestado. Observei que nesses artigos o exame se foca “apenas” nos honorários em si, na possibilidade de cobrá-los, no percentual cabível e na forma de entregá-los aos advogados, como se a questão da remuneração (salário/valores) do reclamante e daquele que trabalhou no processo fosse algo à parte da relação toda entre cliente e advogado, como se fosse um apêndice que pudesse ser desmembrado da inteireza da relação cliente-advogado que nutriu o processo desde o início e durante todo o seu curso.

Explico. É claro que a questão dos honorários em si e da entrega do alvará direto ao reclamante é altamente preocupante porque coloca em risco a própria remuneração do advogado, igualmente de natureza alimentar, tal como aquela que o seu cliente buscou. E isso por razões diversas que, sabemos, existem, mais ainda quando a maioria dos clientes são hipossuficientes.

Com a demora do processo, é natural que a relação cliente-advogado para si atraia, inclusive, obrigações e pactos outros eventualmente não contidos no contrato original e que decorrem de desmembramentos havidos no curso do processo. Sabemos, também, que há, sim, casos nos quais não foram firmados contratos de honorários por escrito, mas houve pacto verbal, e esses são apenas dois exemplos nos quais a juntada do contrato e a reserva dos percentuais nele ajustados não contemplaria, de forma plena, o trabalho efetivamente realizado e o todo pactuado.

Irá o juiz do Trabalho, diante da ausência de contrato escrito, arbitrar honorários? Diante da afirmação do advogado que alega ter pactuado verbalmente acolherá como verdadeiro o percentual por ele declarado? Observará que o advogado, por exemplo, em decorrência de um desmembramento penal de um litígio trabalhista, prestou serviços outros que não estavam arrolados no contrato trabalhista original? E como ficará sabendo disso, desses pactos e combinações que são próprios a relações que, por durarem anos, naturalmente podem se reconfigurar?

Mas isso são situações e a dinâmica da vida está aí com seus infindáveis exemplos. Exemplos que demonstram como é delicado se imiscuir no pagamento dos honorários, inclusive porque nem sempre o contrato escrito é a única lei entre as partes.

O que me chamou a atenção, contudo, nas diversas manifestações e artigos, é que, ao determinar a entrega do alvará à própria parte, mesmo estando habilitado o advogado a recebê-lo, o juiz não se imiscui no pagamento e/ou fixação dos honorários, numa parte final da relação. Ele se imiscui na essência mesma da relação, e por isso na relação toda entre cliente e advogado, pois o seu fim é o seu objetivo, sua razão original, e sem o seu fim ela não se perfectibiliza.

O advogado trabalhista de reclamante, na grande maioria das vezes, trabalha sobre o êxito, num contrato de risco. Atende o cliente sem nada cobrar e, se não houver acordo, geralmente o atende por vários anos, imbuídos, juntos, nessa expectativa de, um dia, chegarem a um final exitoso.

Quando a ação busca obrigação de fazer, só o advogado sabe a alegria que é telefonar para dizer ao cliente que será reintegrado; quando a ação tem repercussão econômica, experimentamos a satisfação de entregar ao cliente aquilo que sempre foi seu.

Nas ações com repercussão econômica, é ainda mais presente o dever de o advogado, pessoalmente, efetuar o pagamento do cliente, prestando contas de forma pormenorizada, demonstrando a correspondência entre os pedidos exitosos e os valores recebidos e fornecendo documentos fiscais obrigatórios. Aplicação inequívoca do artigo 12 do Código de Ética e Disciplina da OAB (Resolução nº 02/2015):

A conclusão ou desistência da causa, tenha havido, ou não, extinção do mandato, obriga o advogado a devolver ao cliente bens, valores e documentos que lhe hajam sido confiados e ainda estejam em seu poder, bem como a prestar-lhe contas, pormenorizadamente, sem prejuízo de esclarecimentos complementares que se mostrem pertinentes e necessários.”

Mais: para além de ser, a conclusão da causa, obrigação do advogado, é também seu direito. Nutrida essa relação pela especialidade da escolha e do encargo, como acima falamos, o advogado tem o direito de encerrá-la e, sobretudo, de encerrá-la bem, e nas ações com repercussão econômica o pagamento do cliente é a conclusão da demanda.

Quem advoga seguindo os preceitos deontológicos da profissão sabe que deve pagar e vê, no ato do pagamento, não raramente depois de muitos anos de relação, a oportunidade de pessoalmente entregar ao cliente o que sempre lhe foi devido e mostrar que valeu a pena, apesar de tudo e ainda que tardiamente, permitindo que o cliente, assim, possa receber e exercer a cidadania tão perseguida.

Sabe também, o advogado, que encerrar bem é condição para iniciar de novo, ser mais uma vez patrono do cliente no futuro ou por ele ser indicado. Esse ato de encerramento da relação, salvo engano, é privativo da advocacia e faz parte do patrimônio de atuação personalíssima e idônea do advogado, inclusive porque é a oportunidade própria para também o cliente esclarecer suas dúvidas, fazer seus balanços e manifestar suas irresignações.

Atendendo o cliente, o advogado que bem compreendeu seu ofício sabe que, pelo humano mecanismo da empatia, apaixona-se pela causa do outro como se fosse sua, e ao seu cliente entrega o que não possui e dele recebe o que não pode tomar, num processo de conhecimento e construção recíprocos, fundado na confiança.

Atribuir esse ato às secretarias das varas, entregando o alvará diretamente para o reclamante, para além das violações legais que têm sido apontadas pelos diversos colegas, retira do advogado a razão de ser que deu origem à relação, tornando cartorial e bancário um momento que, pelo seu significado, sem dúvida merece um tratamento longe do corriqueiro. É como se, depois de anos de tratamento, um médico pedisse para que sua secretária desse alta ao seu paciente, ou que depois de cinco anos de graduação a universidade negasse a colação de grau solene e determinasse que o formando retirasse seu diploma no setor administrativo.

- Hei, moça, com licença. Tô passando aqui pra deixar um agradecimento pro meu advogado, a senhora pode entregar? – o reclamante pergunta, debruçado sobre o balcão da secretaria com um estranho presente em mãos, logo após receber o alvará na agência bancária do foro.

- Olha, não podemos receber nada aqui na vara, e mesmo que pudéssemos, não conheço seu advogado, não conseguiria entregar o presente – responde a servidora, que pela primeira vez atende o reclamante depois de anos de litígio judicial.

Sim, é que o nosso tempo, além de nos colocar a todos sob suspeita, com o Processo Judicial Eletrônico também nos afastou das secretarias das varas. Também na Justiça do Trabalho do RS, cuja qualidade e reconhecimento nacionais estão, sim, ligados à militância e combatividade dos advogados que nela atuam, em breve, se não cuidarmos, perderemos toda a liturgia e, por que não, a consecução, plena de sentido, do atingimento da Justiça.

A advocacia é um ofício grave e essencial à administração da Justiça. E se todos nós não lutarmos pela observância intransigente dos preceitos éticos que a instruem, a mecanização dos atos judiciários, a banalização da vida e do trabalho e as novas tecnologias só vão contribuir para o esvaziamento e o descrédito daqueles que trabalham para entregar direitos a sujeitos que nunca deviam tê-los perdido.

Infelizmente, já estamos todos perdendo.

 

Ingrid Birnfeld é advogada na área do Direito Trabalhista e Sindical, diretora da AGETRA, membro representante da OAB-RS no Comitê Gestor do PJe do TRT-4 e bacharel em Filosofia.

 

Charge: Gerson Kauer

Fonte: Espaço Vital