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Reformas na máquina administrativa e necessidade de observância do devido processo legislativo: o caso do Rio Grande do Sul

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Por: Elisa Torelly, Thiago Cecchini Brunetto e Tiago Gornicki Schneider

 

Introdução

No final de 2016, o então Governador em exercício no Rio Grande do Sul, Sr. José Ivo Sartori, encaminhou à Assembleia Legislativa uma série de processos legislativos, em regime de urgência, totalizando mais de vinte e seis matérias, que reestruturavam toda máquina administrativa estadual. Os projetos extinguiam órgãos públicos centenários (mais de onze órgãos estaduais) e milhares de empregos, entre outras questões. Em menos de quatro dias, apesar da resistência capitaneada principalmente por sindicatos de servidores e de empregados estaduais, foram analisadas mais de quinze medidas, boa parte delas aprovadas, culminando com a extinção de, por exemplo, oito fundações estaduais. 

O que se pretende no presente artigo é, a partir do caso concreto, demonstrar a necessidade de se observar o devido processo legislativo, em seu sentido substantivo, viabilizando a discussão necessária tanto à aprovação como à rejeição de eventuais medidas que reestruturam a máquina administrativa.

 

O vilipêndio do processo legislativo pela forma de tramitação adotada no caso concreto.

Efetivamente, a forma de tramitação do “pacote” do Poder Executivo protocolado em 2016 vilipendia o devido processo legislativo.

Esse modus operandi do Governo Estadual já fora adotado anteriormente, também para alterações profundas na estrutura do Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 2015. De fato, em 23 de dezembro de 2015, o Governo encaminhou pedido de convocação extraordinária, com mais de 15 (quinze) novas proposições, totalizando, ao final, 29 (vinte e nove) projetos a serem apreciados sem a tramitação legislativa regular. Ao final, em 29 de dezembro de 2015, foram aprovadas 27 (vinte e sete) das proposições objeto da Convocação Extraordinária.

O procedimento é idêntico ao efetivado em 2016 pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul: propõe diversos projetos, que alteram profundamente a estrutura administrativa do Estado, ao final do ano, forçando uma votação açodada, sem o devido debate com a Sociedade a respeito do resultado dessas votações. A título exemplificativo, vamos identificar apenas parte dos órgãos estaduais extintos:

- Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec): criada pela Lei nº 6.370/72, é sucessora do Instituto Tecnológico do Estado do Rio Grande do Sul - ITERS, criado em 11-12-1942, existindo, portanto, há mais de 74 (setenta e quatro) anos;

- Fundação de Economia e Estatística (FEE): os trabalhos de estatística que culminaram com a Fundação de Economia e Estatística, criada nessa estrutura através da Lei nº 6.624/73, através da transformação do Departamento de Estatística em Superintendência de Estatística e Informática e, depois, em Superintendência de Planejamento Global, remontam ainda ao período colonial, razão pela qual ela representa a continuidade de um trabalho de quase de 2 (dois) séculos e meio (o primeiro trabalho estatístico de repartição pública é de 1783);

- Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan): criada pela Lei nº 6.748/74, existindo, portanto, há mais de 42 (quarenta e dois) anos;

- Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (Corag): o jornal “A Federação” foi publicado pela primeira vez em 1º de janeiro de 1884, vindo, em 1933, a ser tornar Diário Oficial do Estado por Decreto do Interventor Federal José Antônio Flores da Cunha (Decreto de nº 5.240 de 12 de janeiro de 1933). Em 11 de setembro de 1973, a Lei nº 6.573/73 constitui formalmente a atual CORAG – Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, órgão, portanto, que possui um histórico de mais de 132 (centro e trinta e dois) anos (no mínimo, formalmente, de 93 anos).

Como se vê, os órgãos que o Governo pretendia extinguir dizem respeito a estruturas centenárias, atuantes em prol do Estado há muito tempo; importante destacar que os projetos que extinguem os órgãos possuem dispositivos autorizando a alienação dos bens que lhes pertenciam (a título exemplificativo, art. 3º do PL 240-2016: “Art. 3º Todos os bens das fundações extintas reverterão ao patrimônio do Estado, podendo ser alienados”). E é justamente da análise conjunta das profundas mudanças nessas estruturas históricas do Estado do Rio Grande do Sul, inclusive com permissão de alienação de patrimônio, combinado com o açodamento da discussão imposto pela forma de protocolo e tramitação dos projetos legislativos, que surge o vilipêndio do devido processo legislativo. 

O vilipêndio aos dispositivos das Constituições Estadual e Federal é manifesto:

  1. Art. 1º, V e parágrafo único, da CF: inicialmente, o procedimento açodado utilizado pelo Governo, amparado em crise fabricada e de teor desconhecido pela população (como será tratado em tópico oportuno), implica em evidente desrespeito ao pluralismo político, porquanto inviabiliza que a minoria contingente se articule com a sociedade para barrar projetos da maioria circunstancial do parlamento. Essa mesma situação impede que o povo exerça, ainda que indiretamente, através da pressão sobre os parlamentares, o poder expressamente garantido no parágrafo único;
  2. Art. 5º, LIV, da CF c/c art. 53, XXVII, da CE: a Carta Magna garante que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, afirmando a Constituição Estadual que “Compete exclusivamente à Assembléia Legislativa, além de outras atribuições previstas nesta Constituição: (...) XXVII - autorizar previamente a alienação de bens imóveis do Estado”. O povo do Rio Grande do Sul foi privado de bens que lhe pertencem, através de autorizações absolutamente genéricas, sem o devido processo legislativo substantivo, inviabilizado pelo regime de urgência atribuído à tramitação dos projetos;
  3. Art. 37 da CF c/c art. 19 e 53, XIX, XX, XXI e XXII, da CE: todo “pacote” foi amparado em um discurso de crise econômica do Estado. A Assembleia, porém, abrindo mão de seu poder fiscalizador dos atos do Poder Executivo e deixando de observar o princípio da publicidade ínsito a toda a Administração de todos os Poderes do Estado, votou pela extinção de órgãos e diversos direitos sem saber a exata extensão da crise, na medida em que sem analisar os dados referentes à renúncia fiscal de receitas do Estado do Rio Grande do Sul, o que inclusive foi objeto de medida judicial do Ministério Público Estadual;
  4. Art. 57, 58, 59, 62 e 63 da CE: as propostas de Emenda à Constituição tramitaram no mesmo regime de urgência dos projetos de lei, embora, na prática, o pedido de urgência do Governador se limite aos projetos de lei, conforme previsão constitucional.

 

A reiteração na utilização do regime de urgência em projetos de lei protocolados apenas ao final do ano. Inviabilização da imprescindível discussão da matéria com toda a sociedade

A jurisprudência do STF reconhece o cabimento de medida judicial para coibir atos praticados no processo legislativo (“O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.” – STF, Pleno, MS nº 32.033/DF, Rel. p/ acórdão Min. TEORI ZAVASCKI, j. 20/06/2013, DJE 17/02/2014, RTJ 227/330).

No mesmo sentido, o TJRS reconhece a possibilidade de controlar o ato legislativo que regula o regime de urgência, sindicando-o e anulando-o nas hipóteses em que não exista efetiva premência na apreciação da matéria: “Não obstante contemplado o regime especial de urgência, tanto na Constituição Federal (art. 64, § 1º), como na Constituição Estadual (art. 62), e, por certo, na Lei Orgânica do Município (não veio ao autos), encontra-se condicionada a adoção da especial modalidade procedimental no processo legislativo à premência do exame da matéria, na forma estabelecida no Regimento Interno da Câmara de Vereadores (art. 129, inc. III), em tal situação não e encontra projeto de lei emanado do Poder Executivo que prevê alteração na composição do Conselho Municipal de Saúde. Liminar deferida. Agravo improvido.” (Agravo de Instrumento Nº 70002933323, Primeira Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Julgado em 25/09/2001). No mesmo sentido: Agravo de Instrumento Nº 70002939221, Primeira Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Julgado em 25/10/2001.

O “pacote” de projetos enviado pelo governador tramitou com solicitação de urgência do Poder Executivo. A urgência, como é cediço, permite a dispensa de exigências, interstícios e formalidades regimentais para que uma proposição possa ser apreciada de forma mais célere. A providência, em consequência, é medida extraordinária, haja vista que impede que a tramitação siga os passos regulares do processo legislativo. E aumenta a pressão sobre o Plenário e sobre a sociedade. 

A medida não se justifica em casos como o retratado no artigo: os projetos, por sua amplitude e complexidade, demandariam tramitação regular no âmbito da Assembleia Legislativa, inclusive com realização de audiências públicas. Há entidades históricas com risco de extinção, milhares de trabalhadores afetados, bilhões em patrimônio público em jogo. Medidas que não prescindem de um processo legislativo regular, entendendo-se que este tem como objetivo assegurar a produção de normas justas.

É dizer: injustificável a pretensão de, em regime de urgência, aprovar conjunto de projetos que implica profunda alteração no papel do Estado.

A respeito da necessidade de observância do pluralismo jurídico, imprescindíveis as palavras do Min. Gilmar Mendes:

A proteção à minoria como pilar legitimador da jurisdição constitucional

Além de todo o exposto, tem-se que a proteção da minoria parlamentar e política em geral, representa um fundamento elevado da razão de ser da jurisdição constitucional.

Como se sabe, devemos a Kelsen a associação sistemática da jurisdição a esse aspecto importante do conceito de democracia, que é, exatamente, a possibilidade de sobrevivência e de proteção das minorias. 

A opção de Kelsen pelo modelo democrático está vinculada à concepção teórica do relativismo. O sistema democrático não se legitima pela verdade, mas sim pelo consenso.

Na famosa conferência proferida perante a Associação dos Professores de Direito Público alemães, Kelsen deixou claro que a jurisdição constitucional haveria de ter papel central em um sistema democrático moderno:

‘Contra as muitas censuras que se fazem ao sistema democrático - muitas delas corretas e adequadas -, não há melhor defesa senão a da instituição de garantias que assegurem a plena legitimidade do exercício das funções do Estado. Na medida em que amplia o processo de democratização, deve-se desenvolver também o sistema de controle. É dessa perspectiva que se deve avaliar aqui a jurisdição constitucional. Se a jurisdição constitucional assegura um processo escorreito de elaboração legislativa, inclusive no que se refere ao conteúdo da lei, então ela desempenha uma importante função na proteção da minoria contra os avanços da maioria, cuja predominância somente há de ser aceita e tolerada se exercida dentro do quadro de legalidade. A exigência de um quorum qualificado para a mudança da Constituição traduz a ideia de que determinadas questões fundamentais devem ser decididas com a participação da minoria. A maioria simples não tem o direito de impor a sua vontade - pelo menos em algumas questões - à minoria. Nesse ponto, apenas mediante a aprovação de uma lei inconstitucional poderia a maioria afetar os interesses da minoria constitucionalmente protegidos. Por isso, a minoria, qualquer que seja a sua natureza - de classe, de nacionalidade ou de religião - tem um interesse eminente na constitucionalidade da lei.

Isto se aplica sobretudo em caso de mudança das relações entre maioria e minoria, se uma eventual maioria passa a ser minoria, mas ainda suficientemente forte para obstar uma decisão qualificada relativa à reforma constitucional. Se se considera que a essência da democracia reside não no império absoluto da maioria, mas exatamente no permanente compromisso entre maioria e minoria dos grupos populares representados no Parlamento, então representa a jurisdição constitucional um instrumento adequado para a concretização dessa ideia. A simples possibilidade de impugnação perante a Corte Constitucional parece configurar instrumento adequado para preservar os interesses da minoria contra lesões, evitando a configuração de uma ditadura da maioria, que, tanto quanto a ditadura da minoria, se revela perigosa para a paz social’.

Na experiência do direito comparado, Klaus Stüwe realiza profunda análise sobre a jurisprudência do Tribunal Alemão desde o seu surgimento (1951) até os dias atuais.

O jurista alemão afirma que, na repartição das funções do Estado de Direito, o controle das instituições democráticas é exercido, de forma compartilhada, entre a “oposição parlamentar” e a “jurisdição constitucional”.

Acerca dessa “oposição parlamentar”, Canotilho enuncia o “direito de oposição democrática”, o qual, em suas palavras:

“(...) é um direito imediatamente decorrente da liberdade de opinião e da liberdade de associação partidária. Precisamente por isso, o direito de oposição não se limita à oposição parlamentar (o art. 114.°/3, conjugado com o número 1.° do mesmo artigo, poderia ser interpretado nesse sentido), antes abrange o direito à oposição extraparlamentar, desde que exercido nos termos da Constituição (art. 10.°/2). Por outro lado, como salienta o Tribunal Constitucional Alemão, a oposição exerce-se não apenas face à maioria parlamentar mas também face à maioria parlamentar e governo. A interpretação restritiva do direito à oposição (no sentido de uma simples oposição parlamentar ao «governo de sua majestade»), conduziria, desde logo, a que as forças políticas não representadas no Parlamento vissem a sua liberdade política, o seu direito de participação na vida pública, o seu direito fundamental de associação e a sua liberdade de expressão, indirectamente restringidos (para além do permitido pelo art. 18.°) por uma «anódina» interpretação do direito de oposição democrática (cfr. art. l.°/3 da L n.° 24/98, de 26 de Maio - Estatuto de Direito de Oposição -, onde se refere precisamente o direito de oposição dos partidos sem representação parlamentar). A ideia de oposição extraparlamentar conexiona-se, de resto, com outros direitos fundamentais como, por ex., os direitos de reunião e manifestação (art. 45.°), e com o próprio princípio democrático (cfr. Lei n.° 24/98, art. 3.º/4). O princípio democrático postulará mesmo a oposição extraparlamentar quando a oposição parlamentar deixar de ter expressão significativa, como é o caso das «grandes coligações» formadas por todos ou pelos principais partidos com assento no Parlamento(Allparteienregierung). Específico da oposição parlamentar é o direito à informação regular e directa sobre o andamento dos principais assuntos de interesse público (art. 114.º/3), o direito de fiscalização e de crítica no âmbito da Assembleia da República (arts. 156.°, 180.°/2/c e 194.°), o direito de participação na organização e funcionamento do próprio parlamento (arts. 175.°/b, 176.º/3, 178.º/2 e 180.º/1) e o direito de antena (art. 40.º/2). Particularmente relevante é o direito de consulta prévia (cf. Lei n.° 24/98, art. 5.º) sobre questões políticas importantes (marcação da data de eleições, orientações de política externa, políticas de defesa e segurança interna). O conjunto destes direitos designa-se por direitos de oposição. Constitucionalmente duvidosa é a limitação do direito de réplica política apenas aos partidos de oposição representados na Assembleia da República (cfr., porém, L 36/86, are. 2.°, de 5/9 - garantia de réplica política dos partidos de oposição).”[50]

Nesse particular, o próprio Klaus Stüwe realça o papel desempenhado pelos controles derivados dos direitos da minoria, os quais são importantes, sobretudo, nas hipóteses em que tais prerrogativas sejam “absolutas”, ou seja, independam da vontade da maioria.

Como algumas categorias desses importantes controles, Stüwe destaca dois exemplos da Lei Fundamental alemã. O primeiro é aquele da convocação antecipada do Parlamento (Bundestag) por meio da petição de 1/3 (um terço) de seus membros (art. 39, III). O segundo exemplo diz respeito à obrigação de constituir uma comissão de investigação diante da solicitação de, pelo menos, 1/4 (um quarto) dos parlamentares (art. 44, I).

Daí afirmar-se coerentemente na doutrina alemã que, se requerido, o Parlamento (Bundestag) pode instalar a CPI. O órgão parlamentar deve, porém, instituir a comissão se o requerimento contar com o apoio de pelo menos um quarto dos membros do parlamento. Cuida-se, pois de um direito da minoria em face da maioria – dies ist ein Recht der Minderheit gegenüber der Mehrheit .

Tendo em vista essa circunstância particular, indaga-se, no direito alemão, se, no caso de requerimento da maioria, seria necessária a edição de uma resolução do Parlamento, especialmente se o tema da investigação apresenta-se devidamente definido. A resposta é afirmativa. A resolução é também exigida porque o número de membros da comissão há de ser devidamente fixado.

Já com relação ao aspecto do exercício da “jurisdição constitucional”, devo alertar que as modernas constituições, não obstante consagrarem os direitos fundamentais e o princípio da soberania popular como princípios básicos do Estado de Direito, dispõem, em geral, sobre a forma de manifestação da vontade popular e sobre a atuação dos órgãos representativos dessa vontade.

Nesse contexto, os entes de representação devem agir dentro de limites prescritos, estando os seus atos vinculados a determinados procedimentos. Essas constituições pretendem, portanto, que os atos praticados pelos órgãos representativos possam ser objeto de crítica e controle. Trata-se, em verdade, de um modelo de fiscalização democrática dos atos do Poder Público.

Tal como observado por Dieter Grimm, um sistema que admite o conflito de opinião e a pluralidade de interesses como legítimo somente poderá subsistir se houver consenso sobre a forma de resolução de conflitos e sobre os próprios limites desses conflitos. Se a controvérsia tiver por objeto o próprio método de solução dos conflitos, o sistema democrático não estará livre da ameaça de instabilidades e de tumultos no seu funcionamento.

Essa colocação tem a virtude de ressaltar que a jurisdição constitucional não se mostra incompatível com um sistema democrático que imponha limites aos ímpetos da maioria e discipline o exercício da vontade majoritária. Ao revés, esse órgão de controle cumpre uma função importante no sentido de reforçar as condições normativas da democracia e atenuar a possibilidade de conflitos básicos que afetem o próprio sistema.

A missão de um tribunal como o Supremo é aplicar a Constituição, ainda que contra a opinião majoritária. Esse é o ethos de uma Corte Constitucional. É fundamental que tenhamos essa visão.

Isso está, na verdade, na obra de Zagrebelsky, que versa um tema histórico e teológico fascinante: a crucificação e a democracia.

Diz Zagrebelsky:

“Para a democracia crítica, nada é tão insensato como a divinização do povo que se expressa pela máxima vox populi, vox dei, autêntica forma de idolatria política. Esta grosseira teologia política democrática corresponde aos conceitos triunfalistas e acríticos do poder do povo que, como já vimos, não passam de adulações interesseiras.

Na democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas supostas qualidades sobre-humanas, como a onipotência e a infalibilidade.

Depende, ao contrário, de fator exatamente oposto, a saber, do fato de se assumir que todos os homens e o povo, em seu conjunto, são necessariamente limitados e falíveis.

Este ponto de vista parece conter uma contradição que é necessário aclarar. Como é possível confiar na decisão de alguém, como atribuir-lhe autoridade quando não se lhe reconhecem méritos e virtudes, e sim vícios e defeitos? A resposta está precisamente no caráter geral dos vícios e defeitos.

A democracia, em geral, e particularmente a democracia crítica, baseia-se em um fator essencial: em que os méritos e defeitos de um são também de todos. Se no valor político essa igualdade é negada, já não teríamos democracia, quer dizer, um governo de todos para todos; teríamos, ao contrário, alguma forma de autocracia, ou seja, o governo de uma parte (os melhores) sobre a outra (os piores).

Portanto, se todos são iguais nos vícios e nas virtudes políticas, ou, o que é a mesma coisa, se não existe nenhum critério geralmente aceito, através do qual possam ser estabelecidas hierarquias de mérito e demérito, não teremos outra possibilidade senão atribuir a autoridade a todos, em seu conjunto. Portanto, para a democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas virtudes, ao contrário, desprende-se — é necessário estar de acordo com isso — de uma insupe rável falta de algo melhor.” (Zagrebelsky, Gustavo. La crucifixión y la democracia, trad. espanhola, Ariel, 1996, p. 105 — Título original: II Crucifige! e la democracia, Giulio Einaudi, Torino, 1995).

Zagrebelsky encerra essa passagem notável, falando do julgamento de Cristo. Dizia: Quem é democrático: Jesus ou Pilatos?, retomando um debate que tinha sido colocado por Kelsen no trabalho sobre a democracia. E ele diz:

“Voltemos, uma vez mais, ao processo contra Jesus. A multidão gritava Crucifica-lhe! Era exatamente o contrário do que se pressupõe na democracia crítica. Tinha pressa, estava atomizada, mas era totalitária, não havia instituições nem procedimentos. Não era estável, era emotiva e, portanto, extremista e manipulável. Uma multidão terrivelmente parecida ao povo, esse povo a que a democracia poderia confiar sua sorte no futuro próximo. Essa turba condenava democraticamente Jesus, e terminava reforçando o dogma do Sanedrim e o poder de Pilatos.

Poderíamos então perguntar quem naquela cena exercia o papel de verdadeiro amigo da democracia. Hans Kelsen contestava: Pilatos. Coisa que equivaleria a dizer: o que obrava pelo poder desnudo. Ante essa repugnante visão da democracia, que a colocava nas mãos de grupos de negociantes sem escrúpulos e até de bandos de gangsters que apontam para o alto — como já ocorreu neste século entre as duas guerras e como pode ocorrer novamente com grandes organizações criminais de dimensões mundiais e potência ilimitada —, dariam vontade de contestar, contrapondo ao poder desnudo a força de uma verdade: o fanatismo do Sanedrim.

Ao concluir essa reconstrução, queremos dizer que o amigo da democracia — da democracia crítica — é Jesus: aquele que, calado, convida, até o final, ao diálogo e à reflexão retrospectiva. Jesus que cala, esperando até o final, é um modelo. Lamentavelmente para nós, sem embargo, nós, diferentemente dele, não estamos tão seguros de ressuscitar ao terceiro dia, e não podemos nos permitir aguardar em silêncio até o final.

Por isso, a democracia da possibilidade e da busca, a democracia crítica, tem que se mobilizar contra quem rechaça o diálogo, nega a tolerância, busca somente o poder e crê ter sempre razão. A mansidão — como atitude do espírito aberto ao diálogo, que não aspira a vencer, senão a convencer, e está disposto a deixar-se convencer — é certamente a virtude capital da democracia crítica. Porém só o filho de Deus pôde ser manso como o cordeiro. A mansidão, na política, a fim de não se expor à irrisão, como imbecilidade, há de ser uma virtude recíproca. Se não é, em determinado momento, antes do final, haverá de romper o silêncio e deixar de aguentar.” (...)

O catálogo de direitos fundamentais não está à disposição; ao contrário, cabe à Corte Constitucional fazer o trabalho diuturno, exatamente porque ela não julga cada caso individualmente, mas, quando julga o caso, ela o faz na perspectiva de estar definindo temas. Cabe à Corte fazer, diuturnamente, a pedagogia dos direitos fundamentais, contribuindo para um processo civilizatório mais elevado. 

É preciso ressaltar que a questão da proteção das minorias políticas é constantemente revisitada nos debates desta Corte. É o que se colhe, por exemplo, da firme jurisprudência desta Corte quanto ao direito de oposição das minorias parlamentares para a instalação de CPIs. Nesse sentido, vale lembrar o julgamento do MS 24831, rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 4.8.2006, em que o Plenário assentou a impossibilidade de a maioria parlamentar frustrar, no âmbito do Congresso Nacional, o exercício, pelas minorias legislativas, do direito constitucional à investigação parlamentar.

Naquela oportunidade, o Ministro Celso de Mello, em aprofundado voto, destacou o seguinte:

“A matéria ora submetida ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, Senhor Presidente, reveste-se de inquestionável relevância. A afirmação que ora faço apóia-se no reconhecimento de que existe, em nosso sistema políticojurídico, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, o que deve conduzir esta Suprema Corte a proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares.

Essa percepção do tema – que reconhece, no direito à efetiva instauração do inquérito parlamentar, uma garantia instrumental constitucionalmente atribuída às minorias legislativas, por efeito da imanência do direito de oposição em face do próprio modelo democrático de Estado que entre nós prevalece – encontra pleno suporte no mais autorizado magistério doutrinário (...).

Não se revela possível desconsiderar, por isso mesmo, a própria “ratio” subjacente ao preceito normativo inscrito no art. 58, § 3º, da Constituição, cujo fundamento políticojurídico - que deriva da necessidade de respeito incondicional às minorias parlamentares - atua como verdadeiro pressuposto de legitimação da ordem democrática, tal como adverte o próprio magistério da jurisprudência dos Tribunais (...)

Vê-se, daí, que a questão ora submetida ao julgamento desta Suprema Corte faz com que este Tribunal se defronte com um tema de extração iniludivelmente constitucional, eis que o reconhecimento do direito de oposição, de um lado, e a afirmação da necessidade de se assegurar, em nosso sistema jurídico, a proteção às minorias parlamentares, de outro, qualificam-se, na verdade, como fundamentos imprescindíveis à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito”.

Além disso, o Ministro Celso de Mello deixou registrado que se deve conceder um direito de oposição que não esteja reduzido a uma previsão meramente formal, mas também garantir efetividade por meio de instrumentos hábeis a garantir uma atuação condizente com o nosso sistema democrático:

“Para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica meramente conceitual, torna-se necessário assegurar, às minorias, mesmo em sede jurisdicional, quando tal se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, um direito fundamental que vela ao pé das instituições democráticas: o direito de oposição.

Não basta, desse modo, que se atribua, aos grupos minoritários, o direito de oposição, quer se cuide de oposição parlamentar, quer se trate de oposição extraparlamentar. Mais do que o mero reconhecimento formal da existência desse direito, torna-se imperioso garantir-lhe, em plenitude, o seu efetivo exercício, com todas as conseqüências que dele derivem.

Isso significa, portanto, numa perspectiva pluralística, em tudo compatível com os fundamentos estruturantes da própria ordem democrática (CF, art. 1º, V), que, ao lado do direito de oposição, há que haver a garantia de opor-se, para que essa prerrogativa essencial não se converta em fórmula destituída de significação, o que subtrairia – consoante adverte a doutrina (SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA, “Fundamentos de Direito Constitucional”, p. 161/162, item n. 602.73, 2004, Saraiva) – o necessário coeficiente de legitimidade jurídicodemocrática ao regime político vigente em nosso País.

Por isso mesmo, o direito de oposição, Senhor Presidente, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa promessa constitucional inconseqüente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática concreta”.

Também assentei em voto, no referido julgamento, que esta Corte era acionada justamente para dar eficácia ao direito da minoria parlamentar, relembrando que devemos a Kelsen a associação sistemática da jurisdição constitucional a esse aspecto importante do conceito de democracia, que é, exatamente, a possibilidade de sobrevivência e de proteção das minorias, dado que o sistema democrático não se legitima pela verdade, mas sim pelo consenso. Naquela oportunidade, ressaltei o seguinte:

“Nesse contexto, os entes de representação devem agir dentro de limites prescritos, estando os seus atos vinculados a determinados procedimentos (Cf., a propósito, GRIMM, Dieter. Verfassungserichtsbarkeit - Funktion und Funktionsgrenzen in demokratischem Staat. In: Jus-Didaktik, Heft 4, Munique, 1977, p. 83 (95).). Essas constituições pretendem, portanto, que os atos praticados pelos órgãos representativos possam ser objeto de crítica e controle (GRIMM, Dieter. op. cit., p. 83 (95).). Trata-se, em verdade, de um modelo de fiscalização democrática dos atos do Poder Público.

Tal como observado por Dieter Grimm, um sistema que admite o conflito de opinião e a pluralidade de interesses como legítimo somente poderá subsistir se houver consenso sobre a forma de resolução de conflitos e sobre os próprios limites desses conflitos (GRIMM, Dieter. op. cit., p.83 (96).). Se a controvérsia tiver por objeto o próprio método de solução dos conflitos, o sistema democrático não estará livre da ameaça de instabilidades e de tumultos no seu funcionamento. 

Essa colocação tem a virtude de ressaltar que a jurisdição constitucional não se mostra incompatível com um sistema democrático que imponha limites aos ímpetos da maioria e discipline o exercício da vontade majoritária. Ao revés, esse órgão de controle cumpre uma função importante no sentido de reforçar as condições normativas da democracia e atenuar a possibilidade de conflitos básicos que afetem o próprio sistema (GRIMM, Dieter. op. cit., p. 83 (96).). (...)”

(Voto do Ministro Gilmar Mendes no MS 32033 / DF)

Ora, num momento em que a democracia está tão desacreditada no Brasil (apenas 3 em cada 10 brasileiros a definem como preferível a qualquer outro regime, conforme reportagem do Estadão: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,apoio-a-democracia-no-brasil-cai-22-pontos-diz-pesquisa,10000073814 , acessada em 21-12-2016, 15h28), imprescindível que o Poder Judiciário tutele o processo democrático, dentro do qual está inserida a aprovação do referido “pacote”, de forma a garantir, mesmo que venha a ser aprovada pela circunstancial maioria, possa a atual minoria parlamentar (e, talvez, maioria na sociedade) discutir e exercer seu direito de oposição, através do processo legislativo normal.

 

O necessário caráter substantivo do devido processo legislativo.

Imprescindível conjugar o item acima com o devido processo legislativo substancial, não apenas formal. Explica-se.

Em todo obrar se distingue um fieri e um factum ou, teleologicamente, um caminho e uma meta. Todas as funções estatais e, em particular, todos os atos administrativos, são metas que não podem ser alcançadas salvo por determinados caminhos. Assim, a lei é a meta a que nos leva a via legislativa, e os atos judiciais e administrativos são metas a que nos conduzem o procedimento judicial e o procedimento administrativo.

Logo, o exercício de todas as funções estatais dá-se mediante processo: 

“No Estado Democrático de Direito, o exercício das diferentes funções – e, em conseqüência, a produção dos atos de direito público – exige a observância de processo perfeitamente regulado pelas normas jurídicas. (...). Em suma, os atos estatais são precedidos de processo, isto é, de uma série de atos e fatos encadeados em seqüência: há o processo legislativo para as leis, o processo judicial para as sentenças, e o procedimento administrativo para os atos administrativos”.

Parece existir, portanto, aquilo que Odete Medauar define como núcleo comum da processualidade, ou seja, elementos ligados ao processo que se manifestam no exercício de qualquer função pública. A toda a evidência, isso se aplica também ao caso do processo legislativo. 

É lapidar a explicação de Adolfo Merkl. Diz ele que a teoria processual tradicional considerava o processo como propriedade da justiça, identificando-o com o procedimento judicial. É verdade que na Justiça se encontram as raízes do processo, onde foi elaborado tecnicamente, porém, do ponto de vista jurídico-teórico, a restrição não se sustenta, “porque o processo, por sua própria natureza, pode dar-se em todas as funções estatais, possibilidade que, em verdade, está se atualizando em medida cada vez maior” . 

A atual concepção de processo – não só judicial, mas também administrativo e legislativo – liga-se à idéia de legitimar o exercício do poder: vê-se o “direito processual como um conjunto de princípios, institutos e normas estruturados para o exercício do poder segundo determinados objetivos”.

A idéia que está por trás do tema – para Celso Antônio Bandeira de Mello – é de que “tal como na esfera judicial, para produzir-se o ato próprio de cada função não se requer apenas consonância substancial dele com a norma que lhe serve de calço, mas também com os meios de produzi-la”. Expressa, assim, uma garantia dos cidadãos não só de que o Poder esteja cifrado aos fins estabelecidos em lei – exigência do princípio da legalidade –, “mas também de que tais fins só poderão ser perseguidos pelos modos adrede estabelecidos para tanto”. “É no modos procedendi, em sua escrupulosa adscrição ao due process of law, que residem as garantias dos indivíduos e grupos sociais” . É irretocável: 

“Em face do Estado contemporâneo – que ampliou seus objetivos e muniu-se de poderes colossais –, a garantia dos cidadãos não mais reside sobretudo na prévia delimitação das finalidades por ele perseguíveis, mas descansa especialmente na prefixação dos meios, condições e formas a que se tem de cingir para alançá-los. É dizer: a contrapartida do progressivo condicionamento da liberdade individual é o progressivo condicionamento do modus procedendi da Administração”.

Prevê-se uma trilha de procedimentos para que a finalidade legal seja atingida e, mais do que isso, para que o resultado possa ser, efetivamente, controlado. Intensificado o papel da Administração, antes que se faça gravosa a alguém, parece relevante “zelar por seu correto e prudente encaminhamento”. Celso Antônio Bandeira de Mello distingue um duplo objetivo do Processo Administrativo: resguardar os administrados e concorrer para uma atividade administrativa mais clarividente. 

No primeiro, a idéia está em dar ao administrado a oportunidade de fazer-se ouvir antes da decisão que irá afetá-lo. E não se trata, apenas, de preferir abortar efeitos lesivos a, simplesmente, remediá-los: mais do que isso, o Processo Administrativo permite que o administrado atue na formação do ato administrativo, influenciando a definição da conveniência e da oportunidade. Se a via jurisdicional só se ocupa da legalidade – por mais que avance a sindicabilidade dos atos da Administração, mantém-se certa margem necessária de intangibilidade –, no Processo Administrativo pode-se controlar o próprio mérito do ato.  

No segundo – concorrer para uma atividade administrativa mais clarividente –, seu papel está em concorrer para “uma decisão mais bem informada, mais conseqüente, mais responsável, auxiliando, assim, a eleição da melhor solução para os interesses públicos em causa, pois a Administração não se faz de costas para os interessados, mas, pelo contrário, toma em conta aspectos relevantes por eles salientados e que, de outro modo, não seriam, talvez, sequer vislumbrados”.

Se tal se faz presente no próprio Processo Administrativo, mais essencial, ainda, se faz em relação ao processo legislativo. A toda a evidência, é imprescindível que toda sociedade possa se manifestar, através de uma ampla discussão, que foi vedada no caso. Mais ainda, a minoria parlamentar, que pode estar respaldada por uma maioria na sociedade, deve poder exercer sua capacidade de convencimento da população e, consequentemente, viabilizar a pressão dessa população sobre seus representantes legítimos. 

O Processo, além de garantir maior eficiência da Administração, serve para assegurar os direitos e interesses dos particulares:

“O processo infunde ao ato racionalidade, imparcialidade, equilíbrio; evita que o agente o transforme em expressão de sua personalidade. Sem ele, o agente fatalmente excederia seu papel de intermediário entre o Direito e o ato a ser produzido. A experiência histórica mostra ser maior o risco de inconstitucionalidade na lei surgida sem processo legislativo prévio, ou de ilegalidade no ato administrativo instantâneo. As várias etapas do processo – propiciando melhor conhecimento e comprovação dos fatos, maior discussão, mais ampla reflexão – fazem menos provável a violação da ordem jurídica. (...)

O processo é, então, em perfeita coerência com a idéia central do direito público, de realizar o equilíbrio entre liberdade e autoridade, a contrapartida assegurada aos particulares pelo fato de serem atingidos por atos estatais unilaterais. Sem que a decisão do Estado deixe de ser ato de autoridade, protege-se o indivíduo a ser afetado: condicionando a produção do ato a um processo do qual ele possa participar. Sob este ângulo, o processo cumpre papel eminentemente ligado à tutela dos interesses e direitos dos particulares”.

Odete Medauar vislumbra o procedimento como um meio para que os diversos interesses aflorem antes da tomada das decisões, o que permite não só o confronto objetivo, mas, também, em determinadas situações, que sejam encontradas formas de coexistência. Isso é por demais significativo, já que a Administração, hoje, está inserida em sociedade e Estado caracterizados pela complexidade social, política e econômica, do que resulta pluralismo social e multiplicidade de interesses.

Deixa de ocorrer o rígido confronto entre autoridade e liberdade, em prol de um compartilhar do poder que se liga ao princípio democrático: o esquema procedimental atende à exigência pluralista que domina a sociedade atual, pois chama a cooperar, no exercício do poder, todos os sujeitos privados e públicos inscritos no quadro de disciplina do poder e, portanto, envolvidos no exercício deste. É maneira de realizar a democracia pelo procedimento.

O significado do processo expressa-se nas seguintes finalidades: melhor conteúdo das decisões (contribui-se para a determinação do fato ou da situação); eficácia das decisões (a decisão é mais suscetível de cumprimento se o particular pôde participar de sua formação); legitimação do poder (supera-se a idéia de imperatividade unilateral); correto desempenho da função; justiça (formal e material); aproximação entre Administração, Poder Legislativo e cidadãos; sistematização de atuações.

Assim, estando claros os princípios que devem incidir no processo legislativo, notadamente quando ele é utilizado para permitir a alienação de bens pertencentes à coletividade, que encontram proteção especial na Constituição Estadual, resta evidente que não se pode admitir uma discussão açodada e meramente formal  a respeito de questões tão importantes e caras à população.

 

Considerações finais.

Depreende-se, do caso narrado, como evidente a inconstitucionalidade acarretada pela atribuição de regime de urgência à tramitação dos projetos legislativos encaminhados, ao final de 2016, pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, à Assembleia Legislativa daquela unidade federativa. Significativos para o interesse da coletividade e voltados à reformulação do modelo de Estado – por implicarem a dilapidação do patrimônio público, o desemprego de milhares de trabalhadores e a extinção de entidades fundamentais para o cumprimento do papel do Estado pela Administração Pública–, eram projetos incompatíveis com a celeridade com que se deu a tramitação, porquanto sua votação não podia prescindir de amplo debate com a sociedade, sob pena de violação ao devido processo legislativo, em seu sentido substantivo.

Para um processo legislativo ser hígido, a predominância da vontade da maioria legislativa só pode ser aceita se havida dentro dos limites da legalidade. No caso estudado, foi negado à oposição parlamentar o direito a um amplo debate, por exemplo, acerca da extensão da crise financeira propagada pelo Governardor como pretexto à extinção de órgãos e direitos – especialmente ante à ausência de informações acerca das renúncias fiscais das receitas do Estado do Rio Grande do Sul. Como consequência, a minoria legislativa, e mesmo as forças políticas não representadas no Parlamento, sofreram ofensa à sua liberdade política, ao seu direito à participação na vida pública, ao seu direito fundamental de associação e à sua liberdade de expressão. Fica também clara, em última análise, a violação ao princípio democrático. 

A aprovação açodada de projetos de tamanha magnitude, portanto, constitui exercício ilegítimo do poder legislativo: é imprescindível permitir à sociedade a oportunidade de ser ouvida antes da decisão que a afeta, observando-se o atributo da transparência, essencial em um regime democrático. Lamentavelmente, no entanto, o desrespeito ao devido processo legislativo – e, consequentemente, às garantias dos indivíduos e dos grupos sociais – tem se revelado como meio deliberadamente adotado para assegurar a aprovação de históricas, injustificáveis e inaceitáveis políticas de desmantelamento das estruturas de Estado.

 

Referências.

MERKL, Adolfo. Teoría General Del Derecho Administrativo. Cidade do México: Nacional, 1975;

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1998;

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000;

MEDAUAR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. São Paulo: RT, 1993;

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: RT, 1992;

Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Mandado de segurança nº 32033/DF – Distrito Federal. Relator originário: Min. Gilmar Mendes. Relator p/ Acórdão:  Min. Teori Zavascki. Julgado em 20-06-2013, Publicação DJe-033 , divulgado 17-02-2014. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp >. Acesso em: 05-09-2017;

Tribunal de Justiça do RS. Primeira Câmara Especial Cível. Agravo de Instrumento Nº 70002933323, Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Julgado em 25/09/2001. Disponível em < http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=jurisnova#main_res_juris >. Acessado em 05-09-2017;

Tribunal de Justiça do RS. Primeira Câmara Especial Cível. Agravo de Instrumento Nº 70002939221. Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Julgado em 25/10/2001. Disponível em < http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=jurisnova#main_res_juris >. Acessado em 05-09-2017.

 

Este artigo faz parte do livro "Estratégias autoritárias do Estado empregador: assédio e resistências”, organizado pelo Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos – CNASP, em parceria com a Universidade Federal do Paraná – UFPR e a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, com apoio da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e da CAPES.

Elisa Torelly, Thiago Cecchini Brunetto e Tiago Gornicki Schneider são advogados na área de Direito Público, tratando de questões de interesse de servidores públicos e de suas entidades representativas.