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Trabalhadores domésticos: desafios da sindicalização

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Por: Raquel Paese

Para alcançar a igualdade, há que começar por não discriminar. A não discriminação é o conteúdo mínimo da igualdade; um pequeno passo no caminho da igualdade.”

Oscar Ermida Uriarte

Estamos vivendo hoje, com a edição da Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, conhecida como a Lei dos Domésticos, um dos mais importantes períodos de conquistas de direitos trabalhistas pelos empregados domésticos no Brasil, no sentido de lhes garantir reconhecimento como uma categoria profissional portadora de direitos trabalhistas.

Fruto de um processo que teve como ponto culminante a aprovação da Convenção 189, na 100ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 16 de junho de 2011, realizada em Genebra, contando com 396 votos a favor, 16 votos contrários e 63 abstenções dos delegados representantes de governos, empregadores e trabalhadores, essa aprovação é considerada um ato histórico promovido por delegados na busca por garantir aos trabalhadores domésticos condições de trabalho decente.

E, neste curto período de tempo, desde a aprovação da Convenção da OIT até a tramitação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC dos Domésticos) no Congresso Nacional, o tema provocou intensa discussão no Congresso, no Judiciário e na sociedade em geral, com evidente resistência de parte da classe média brasileira, maior empregadora, que queria deixar tudo como era antes.

Não há dúvidas de que a legislação recém aprovada é um avanço significativo para esta importante categoria profissional e terá importantes efeitos, já que as/os trabalhadoras/es domésticos representam, segundo dados do IBGE de 2013, 7,8% da população economicamente ativa no Brasil. Trata-se da maior quantidade de empregados domésticos no mundo. 

Fixação de jornada de trabalho em oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, FGTS, seguro-desemprego, trabalho noturno com remuneração superior ao diurno, auxílio-acidentário, dentre outros direitos há muito reivindicados foram contemplados na nova legislação.

Tendo sido reconhecida pela legislação trabalhista somente em 1972, e de modo extremamente restritivo – direito ao registro do contrato na carteira do trabalho, férias e previdência social, a categoria dos empregados domésticos recebeu desde então tratamento legal totalmente diferenciado e muito aquém dos demais trabalhadores. E mesmo a Constituição Federal de 1988 negou expressamente aos empregados domésticos a maioria dos direitos trabalhistas nela elencados, deixando-os à margem de direitos fundamentais alcançados pelos demais trabalhadores.

Com a nova legislação, não foram garantidos todos os direitos pretendidos, no sentido de se obter igualdade plena em relação aos demais trabalhadores, frustrando muito a expectativa que se tinha com a aprovação da Emenda Constitucional nº 72. Mas se assegurou um conjunto de direitos que certamente vai estabelecer doravante um novo padrão de regulação nas relações de trabalho doméstico.

O desafio daqui para frente será assegurar a plena eficácia da legislação. Garantir seu integral cumprimento pelos empregadores. Essa não será tarefa fácil, pois estamos diante de uma profissão difícil de fiscalizar devido à enorme pulverização da categoria.   

Nesse sentido, as instituições a quem cabe fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista – Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Judiciário Trabalhista e Sindicatos – deverão ter papel fundamental nesse processo.

A grande maioria dos sindicatos de trabalhadores domésticos existentes no Brasil, em número pouco significativo, encontra-se totalmente desestruturada, por conta da absoluta ausência de condições e meios para o desempenho de suas atividades precípuas. Isso porque nunca lhes foi garantida sustentação financeira, nos moldes das demais entidades sindicais, que contam não somente com a arrecadação da contribuição sindical obrigatória, mas também com contribuições definidas pela categoria profissional em assembleia (contribuição confederativa e contribuição assistencial ou negocial). Os sindicatos de trabalhadores domésticos contariam tão somente com contribuições espontâneas dos associados, o que se revela insuficiente e inviável dado o baixíssimo grau de sindicalização da categoria e do alto grau de atomização da categoria.

A contribuição sindical obrigatória, também conhecida como imposto sindical, é descontada de todos os integrantes da categoria profissional e se destina a sustentar a estrutura do sindicato e suas principais atividades. Como pretender, portanto, que os sindicatos de empregados domésticos realizem suas funções primordiais, como as homologações de rescisões contratuais, a fiscalização do cumprimento dos direitos trabalhistas, a atuação junto aos órgãos públicos de fiscalização, a atuação judicial, dentre outras, sem ter os meios para fazê-lo?

A nova legislação, sem justificativa plausível, não contemplou esse aspecto fundamental. Deixou de garantir aos sindicatos de empregados domésticos meios econômicos para sua subsistência, praticamente inviabilizando sua existência.

Se olharmos retrospectivamente, vamos ver que o movimento das trabalhadoras domésticas teve papel histórico importantíssimo na luta contra a discriminação, na resistência à exploração econômica e à marginalização. Organizadas inicialmente em associações e, posteriormente, criando alguns sindicatos, as trabalhadoras domésticas, através de importantes lideranças, garantiram visibilidade para a luta por reconhecimento profissional e igualdade de direitos em relação aos demais trabalhadores.

É uma luta antiga, que possui uma história muito peculiar. 

Teve início em 1936, através da atuação de Laudelina de Campos Melo, que fundou a Associação Profissional dos Empregados Domésticos de Santos. Essa primeira organização de trabalhadoras domésticas tinha o objetivo de conquistar o status jurídico de sindicato com a finalidade de negociar com o Estado o reconhecimento jurídico da categoria e, consequentemente, os direitos trabalhistas. Laudelina era politicamente atuante, filiada ao Partido Comunista Brasileiro e participava de grupos culturais com o propósito de construir e fortalecer a solidariedade da população negra. 

A partir daí as organizações do movimento negro encamparam as discussões da situação das trabalhadoras domésticas (a definição então era sempre no feminino, dado o fato da categoria ser composta quase exclusivamente por mulheres), assim como muitos sindicatos de outras categorias profissionais.  

A partir da década de 60, o movimento das trabalhadoras domésticas se intensificou, passando a ser fomentado pela Igreja Católica através da Juventude Operária Católica (JOC). As igrejas e paróquias eram um dos poucos lugares em que as empregadas domésticas podiam se encontrar e compartilhar seus problemas. Nesse período, por incentivo desse movimento da Igreja Católica, foram criados grupos e fundadas muitas associações de trabalhadoras domésticas no Brasil.  Em 1960, a JOC realizou o 1º Encontro Nacional de Jovens Empregadas Domésticas no Rio de Janeiro, que reuniu trabalhadores de diversas regiões do país já organizados em vários estados. 

A combinação desses fatores – movimento negro, sindicalismo e Igreja Católica – garantiu o surgimento de um movimento nacional das trabalhadoras domésticas.

O 1º Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas, realizado em São Paulo, em 1968, foi organizado pelas próprias trabalhadoras. Não há muitos registros acerca das discussões nele travadas, mas a ênfase de suas deliberações foi no reconhecimento como categoria profissional. E serviu para que as participantes planejassem ações nacionais.

O 3º Congresso Nacional, realizado em Belo Horizonte, em 1978, elegeu uma Equipe Nacional, constituída por um integrante de cada associação, com o objetivo de fortalecer a união dos grupos e associações existentes e com a responsabilidade de organizar os congressos nacionais.

O 5º Congresso, realizado em Olinda, em 1985, conhecido como o “Congresso de Recife”, foi um dos mais importantes da história de mobilização da categoria, com a participação de 126 delegadas de 14 estados. As conclusões deste congresso, além de amplamente divulgadas, foram encaminhadas a deputados federais e senadores, reivindicando a inserção dos direitos dos trabalhadores domésticos na nova Constituição, em fase de elaboração.

Após a Constituição de 1988, tendo sido conquistados poucos dos direitos historicamente reivindicados, a busca por tratamento isonômico com os demais trabalhadores continuou sendo a principal luta das associações e dos sindicatos de trabalhadores domésticos, uma vez que o direito de sindicalização tinha sido conquistado.

Em 1997, foi fundada a FENATRAD (Federação Nacional dos Trabalhadores Domésticos), que em 1999 filiou-se à CUT (Central Única dos Trabalhadores) e à CONTRACS (Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio e Serviço). Além disso, o movimento dos trabalhadores domésticos ganhou uma projeção internacional através da intensificação da participação nas atividades da CONLACTRAHO (Confederacion Latinoamericana y del Caribe de Trabajadoras del Hogar) e de entidades internacionais, sobretudo ligadas ao feminismo e ao movimento negro e de combate ao trabalho infantil, como a OIT e o UNICEF.

  Mas a atomização da categoria profissional dos empregados domésticos torna muito difícil a organização em sindicatos. Segundo registros obtidos no Cadastro Nacional das Entidades Sindicais do Ministério do Trabalho, há apenas 23 sindicatos regularmente existentes no Brasil, o que significa dizer que a grande maioria dos sindicatos de empregados domésticos que atuam de fato em prol da categoria não tem conseguido obter seu registro formal.

Se as dificuldades começam na própria fundação de sindicatos, mais difícil ainda é a obtenção de benefícios que nascem das mãos do Direito Coletivo do Trabalho, em especial aqueles derivados da negociação coletiva, atividade precípua dos sindicatos. Com quem os sindicatos de empregadores domésticos iriam negociar? Dificilmente se conseguiria constituir sindicatos patronais nesse setor, dadas as características que o identificam. Não há uma perspectiva concreta neste sentido.

No Brasil, a organização sindical se dá por atividade ou profissão e não por ramo de atividade, como na maioria dos países mais avançados nesse campo, o que dificulta significativamente a organização dos trabalhadores domésticos, obrigados a constituir sindicatos próprios. E, nesse sentido, também os acordos e convenções coletivas devem ser exclusivos para a categoria, não podendo os empregados domésticos se beneficiar por acordos e convênios do ramo de atividade em que estão inseridos.  

Mas a questão mais grave parece ser a ausência de sustentação econômica dos sindicatos. Como outorgar aos sindicatos de empregados domésticos a possibilidade de ação sindical sem lhes garantir os instrumentos, os meios? 

Na tentativa de garantir sua existência e a realização de atividades mínimas e essenciais, alguns sindicatos de empregados domésticos se valeram de mecanismos como a cobrança de taxa para homologação ou a destinação de parte de honorários advocatícios e assistenciais recebidos em ações judiciais para sua sustentação. Porém,  essas iniciativas estão sendo atacadas pelo Ministério Público do Trabalho e rechaçadas pelo Judiciário, levando os sindicatos ao encerramento de suas atividades e até ao fechamento de suas portas.

O desafio, portanto, passa por construir alternativas que viabilizem economicamente os sindicatos de empregados domésticos. Que garantam a sua existência e sustente suas atividades, especialmente aquelas voltadas para a fiscalização, porque a informalidade nas relações de trabalho doméstico é ainda o maior entrave para que os direitos obtidos pela nova legislação sejam alcançados a toda a categoria.

Ainda, é fundamental que as entidades representativas dos empregados domésticos sigam se articulando nacionalmente para avançar na luta por garantir à categoria igualdade plena de direitos em relação aos demais trabalhadores. 

É fundamental também que se insiram dentro do movimento sindical, do movimento feminista e movimentos sociais em geral na luta por condições dignas de trabalho e de vida, saúde e educação pública de qualidade, moradia e previdência etc.

Há uma expectativa muito positiva com a nova lei. Devemos extrair dela todas as possibilidades de obter um novo padrão nas relações de trabalho doméstico, garantindo trabalho decente e digno.  Não podemos frustrá-la. E, para tanto, além da atuação dos sindicatos como sujeitos fundamentais nesse processo, há que se exigir que as instituições que têm a responsabilidade de assegurar a defesa dos direitos do trabalho (em especial o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego) exerçam de maneira efetiva o papel que lhes cabe.   

*Raquel Paese é advogada na área do Direito Trabalhista e Sindical.